quinta-feira, 9 de abril de 2015

A aparição dos meus anjos


Quando era pequeno, explicaram-me os anjos. Seres celestiais, mensageiros de Deus, junto de nós, pobres mortais. Brancos, com caracóis loiros e grandes asas de penas. Detentores de uma beleza delicada e que emanam forte brilho. Discutir o seu sexo é sinónimo de perda de tempo, pois todos sabemos que não o têm. Embora invisíveis, estão por perto, com a missão de nos protegerem.

É certo que nem todos conseguem sentir os seus anjos, mas eu sinto os meus. E sinto-os especiais. Diferentes das imagens dos livros da catequese e das estátuas nos altares das igrejas. Sinto-os jovens a brincarem entre gargalhares e pulos divertidos. Gritinhos e brinquedos caídos no chão. À noite, enquanto durmo, sou visitado por eles. Desperto do meu profundo sono com um som que me chega das alturas, num canto a duas vozes, por vezes acompanhado pela melodia de um violino.

No início fui sentindo-os. Até que chegou o dia em que se deu a aparição dos meus anjos.

Foi à entrada do nosso prédio. Tinham cabelos aos caracóis, não loiros, mas castanhos. Duas meninas, irmãs (afinal tinham sexo). Vinham acompanhadas pelos pais e, em vez de asas, traziam mochilas às costas. Duma gentileza pouco habitual nos jovens de hoje saudaram-me com um sorriso simpático enquanto me seguravam na porta para eu sair.

Então reparei que só as suas tenras idades me impediam de as achar uma encarnação das irmãs da Gata Borralheira que apareciam nos filmes de animação da minha infância. Um pouco como os cães abandonados, vadios e pulguentos que, quando cachorrinhos são sempre fofinhos. O futuro, contudo, adivinhava-se com facilidades de vidente de feira, bastando observar o desmazelo da mãe, próprio das mulheres que foram abandonadas pela vida e o nanismo do pai que parecia ser a sua maior característica.

Era então aquela dupla a responsável pelos gritos que ouvíamos no andar de cima. Passagens de modelos com os sapatos de salto, certamente subtraídos ao armário da mãe. Berlindes (abafadores aposto) atirados ao chão. Cânticos em si maior que, como toda a gente sabe, é a tonalidade imperfeita do demónio. Já para não falar quando assistimos a jogos de futebol decisivos e nos restam apenas sensações de prazer interrompido por anúncios prematuros de golos. Frustrações motivadas pelas diferentes velocidades dos sinais das televisões conjugadas com uma completa ausência de sensibilidade para a acústica.

Curiosamente, os pais não se ouviam. Nem sequer em intervenções próprias da prática da educação de duas filhas. Talvez já se tivessem rendido. Desistido daquilo que é, a todos, difícil de fazer. Demitido das funções de progenitores educadores. Ou, simplesmente, nunca tivessem sido eles próprios ensinados ou procurado aprender.

Naquele dia, segui o meu caminho incomodado pelo facto de, lá em casa, não termos o sossego que entendo todos merecermos ter nos nossos lares. E quando quase chegava ao trabalho, subindo em passo acelerado a principal avenida da cidade, reparei que junto a um banco do jardim, no chão, dormia um homem (não um velho) alguém duma idade não determinável. À sua volta os seus anjos protetores depenicavam no chão tudo o que pudesse ser resto do seu alimento. Afastei os pensamentos habituais, mas imaginei que um dia, aquele homem que se afastava, sem dúvida, da humanidade por necessidades de adaptação, teria tido com certeza uma casa, talvez mesmo um lar.

Se calhar, quando voltar do trabalho ao fim do dia, compro um saco de pães e desfaço um deles para dar aos anjos cinzentos que protegem o homem que vive debaixo do banco.

E o resto, em chegando a casa, vou ao andar por cima e ofereço-o às duas meninas de caracóis como sinal do meu agradecimento, por viverem, mesmo que entre gritos e pulos, por cima do teto que ainda tenho a sorte de ter. E que me abriga de anjos cinzentos.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Hoje lembrei-me de ti

Hoje lembrei-me de ti. Não porque faças anos. Nem porque seja Natal ou qualquer outra data obrigatória. Nada preciso pedir-te ou combinei contigo. Apenas me lembrei de ti.

Não sei exatamente porquê. Talvez porque um dia me disseste aquilo. Lembras-te? Aquilo que eu precisava ouvir e nem sequer o imaginava. E, no entanto, depois de o dizeres, pareceu-me tão óbvio. O teres reparado. O teres-me feito sentir bem. Com algum valor. O reconhecimento que outros não notaram, o conforto que me criaste.

Hoje lembrei-me de ti.

Porque um dia deixaste uma marca em mim, dando-me uma parte de ti. E assim, de algum modo, ficaste (para sempre) comigo, algures num contorno da minha própria forma.

Alguns teriam dito 'Ultimamente não tenho tido muito tempo para amizades, pois tenho andado ocupado com os ódios do quotidiano.'
Mas tu, não. Tu deste, sem pedir de volta. Sem esperar alguma coisa em troca. Porque preferes dar, do que receber. E ainda preferes que eu cuide melhor de mim do que de ti.

Contigo aprendi que a amizade não se procura nem se encontra. Nós sim, somos por ela encontrados. E eu fui encontrado pela tua.
Por ti, descobri que a amizade não acontece. Pratica-se. Com uma capacidade que ou temos ou não queremos.

Sinto a tua amizade, não tanto pelo que me dás, mas pelo que me ensinas de mim. Reparo como falas bem dos teus amigos na sua ausência e sei que o fazes também comigo. A tua amizade existe por aquilo que me deste. Não pelo muito que ainda me podes vir a dar. Ao mesmo tempo fazes-me sentir parte de ti. Como se as nossas maneiras de ser se intersetassem. Como se já antes nos conhecêssemos e pouco precisássemos dizer para nos entendermos.

Sinto que o tempo e distância que nos têm separado não prejudicam a nossa amizade. E isto, porque nós não nos usamos para ocupar os nossos tempos livres. Só para ir ao café ou jantar fora. Por não temos caído nas rotinas que exigem mais um do outro, como que um querer esgotar o que outro tem (não vá a vida acabar amanhã). Ao contrário, nós procuramo-nos quando temos assunto para preencher o nosso tempo. Para entregarmos um ao outro mais um pouco de nós. Para exercer a prática daquilo que nos vai mantendo Amigos.

Hoje apeteceu-me falar contigo...
E dizer-te que me lembrei de ti.

quinta-feira, 12 de março de 2015

A Casa da Peneirada


E chegávamos a casa dos avós na Beira Alta. O carro cansado detinha-se em frente ao portão de madeira pintado de verde.
Entrávamos para o jardim feito de pequenos caminhos entre os canteiros desenhados pelos buxos com aquele cheiro único, ainda hoje, irremediavelmente gravado na minha memória. Um aroma que me acompanhava quando andava no triciclo azul que havia sido do pai e, mais tarde, no verão ou naquelas manhãs de inverno brancas de geada.

Os avós recebiam-nos como que sobreviventes duma longa batalha e com saudades como se fossem de anos.

A avó Têca que sempre nos ensinou como uma notável austeridade podia conviver com um imenso carinho, não escondia a felicidade de nos ver. Eternamente preocupada com a nossa boa saúde e crescimento que resolvia com dietas imensas de delícias inigualáveis. Ao mesmo tempo apontava-nos o dedo decidido e sentenciava 'Estás magro que nem um cão. Tens que comer mais.'

O avô Domingos de fato completo preto, com a correia doirada do relógio pendurada no colete e lunetas adaptadas aos óculos, vivia permanentemente ocupado entre jornais enormes e escritas que levava a cabo sentado na secretária de madeira escura do seu escritório. Nunca percebi bem qual era a sua profissão até que um dia me atrevi e perguntei: 'O avô é engenheiro?', Com um sorriso bem-disposto, respondeu: 'Eu, engenheiro? Eu, quanto muito, sou engenhocas.'

Aprendi mais tarde que fazia peças lindíssimas em madeira com desenhos feitos de encaixes perfeitos. Como aquele pequeno castelo que sempre vi em cima da sua secretária, com ameias e uma torre ao centro na qual, entre paredes, entrava, como luva, um relógio de bolso. Guardava nele, entre cartas, sinetes e pequenas barras de lacre de cor avermelhada.

Também a gaiola dos pássaros numa prateleira na varanda que era réplica da própria casa havia sido construída por aquele meu parente que eu tanto respeitava.
A varanda era aquela divisão da casa típica da Beira Alta, toda ela janelas viradas a sul, onde secava a marmelada num sem número de malgas de barro, tapadas por uma folha de papel vegetal previamente embebida em aguardente. Também lá, se encontravam as melhores seleções de pevides, restos dos melhores melões que havíamos comido e que secavam distribuídas por pedaços de jornais em cima duma cómoda.

Outra das soberbas obras era o Mahjong, com as peças impecavelmente cortadas. Uma metade em madeira escura colada a outra de madeira clara. A avó tinha contribuído com as suas habilidades, pirogravando as cento e quarenta e quatro pecas, entre chinas e bambus, dragões e ventos.

Para além do escritório, o avô tinha uma oficina com todo o tipo de ferramentas. Entre alicates, tornos, formões e martelos, nada faltava para a confeção dos seus tesoiros de madeira.

A diversidade de atividades não se esgotava, contudo, aqui. Na oficina havia também um armário repleto de frascos de vidro como os da farmácia. Uns transparentes outros azuis-escuros e outros ainda castanhos. Cada um com rótulo de papel manuscrito a anunciar os químicos que encerrava. O pai explicou-me que serviam para experiências e aplicações nas várias plantações que havia na quinta.

Mas o instrumento que mais me maravilhava era uma máquina para revelar daguerreótipos, acompanhada das chapas e produtos necessários. A janela daquela divisão tinha mesmo uma pequena portinhola com um vidro encarnado que visava deixar a oficina em modo de câmara escura.

O quarto onde me lembro ter dormido as primeiras vezes naquela casa de sonho, era ainda o dos pais. Ficava no andar mais alto, por cima do escritório e era frequente darmos com passarinhos a esvoaçarem lá dentro, talvez por ter junto às janelas os ramos da maior das árvores do jardim. Por isso chamávamos-lhe o Quatro dos Passarinhos.

A cama onde eu dormia (na altura, ainda de grades) ficava ao canto, do lado direito da de casal, do lado onde dormia a mãe. Aquele quarto tinha, para além da habitual cómoda e guarda-vestidos, um móvel cuja parte superior de mármore tinha um lavatório, ainda que sem água corrente. Para o encher, tínhamos jarros de esmalte trazidos do andar térreo e, para o despejar, retirávamos a tampa, fazendo escorrer a água para um balde que se encontrava no armário existente por baixo.   

'Vamos para a mesa!' chamou a avó.

De verão, as refeições eram servidas na sala de jantar, em vez de na sala de estar onde, de inverno, aproveitávamos o calor da braseira. Era uma sala com painéis de madeira a toda a volta com uma altura média dum homem adulto e com um pequeno rebordo onde se expunham loiças decorativas. Ao canto havia uma lareira que raramente vi em funcionamento.
A mesa, posta com o rigor do quotidiano daquela casa, contava com alguns pormenores engraçados como os descansos onde se apoiavam, do lado direito, as facas e a colher de sopa. Cada um dos comensais tinha também, junto aos copos, uma pequena tijela com água na qual lavava as cerejas (ou outra fruta) à medida do seu apetite.

No dia daquela nossa chegada o almoço era ainda mais elaborado, resultado das orientações rigorosas da avó. A sopa era obrigatória, um prato de peixe e um de carne, seguidos depois dum doce e, finalmente, da fruta.
No fim havia sempre o ritual do café feito em balão. Todos assistíamos maravilhados quando o avô acendia a lamparina colocada por baixo do recipiente inferior fazendo ferver a água que, por sua vez, subia à parte superior onde se encontrava o café moído. Depois bastava esperar que o líquido, já escuro, descesse enquanto a sala era invadida pelo aroma único do café.

Enquanto os mais velhos o terminavam de beber o café, o pai perguntou:

'Quem quer ir a seguir lá abaixo ver a quinta?' criando de imediato uma agitação de felicidade extra nos três irmãos.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Experiências que a civilização apagou


Mais tarde ou mais cedo, irá acontecer.
E eu, como muitos, vou esperando que o dia passe. Que mais um dia passe. Quantos mais? Quanto tempo mais?

Hoje tenho três reuniões que ainda preciso preparar e um almoço que me é importante. Hoje não me dá jeito. Não tenho vagar. Vou ter que deixar para amanhã ou, se calhar, para um outro dia.

Vivemos num termo algures entre o conformados e o enganados. Mas enganados por nós próprios. Por ser mais fácil arranjar falsas explicações que nos convençam estarmos bem, do que nos fazermos melhores pessoas.
Não conheço quem não diga viver na melhor terra, no melhor bairro. Ter o melhor médico (todos eles chefes de serviço no hospital). Os filhos na melhor escola (onde também anda a filha do ministro).

Dizer o contrário seria como que admitir o erro próprio. O ter falhado. E não alimentar a crença naquilo que nos faz felizes. Não poder ser reconhecido pelos outros.

Mas um certo fel me vai invadindo o paladar do espírito. Um estado de angústia crescente que finjo não entender só porque, hoje, não tenho tempo. Ou o tempo que não tenho é inventado para que não tenha que entrar nesta arena e conseguir vencer mais esta fera do momento.

Estas interrupções de emoções e instintos comutadas em exercícios da razão são, a meu ver, contranatura. E por isso as adiamos na esperança vã de que a vida nos resolva as vontades.

No entanto, quanto mais tempo passa mais flacidez é acumulada na nossa mente. E, consequentemente, o inevitável será sem dúvida mais sofrido.

O que fazer então? Que ideia ter quando nem mais um sal se dilui e o nível de saturação parece já ter atingido o seu máximo.
                                                         
Chegámos a um ponto em que urgem pensamentos estranhos. É hora de ideias absurdas. Tanto quanto um ovo convenientemente rachado garante o próprio equilíbrio.

A imitação ou mesmo a adaptação das ideias alheias não bastam nem resultam senão na confirmação do esgotado.
O conceito do reinventar que tanto se vai usando nos dias de hoje, já não tem lugar eficaz. Teremos mesmo que inventar, como que do zero.

De nada serve mudarmos de morada, trabalho ou mesmo de amigos. A solução tem que passar por vivermos de uma outra forma. Mais ainda que olharmos a vida de uma outra perspetiva, temos que a viver duma maneira que ninguém ainda conhece. Ou porque realmente nunca existiu ou porque aqueles que conheceram essa fórmula, já há muito partiram e não deixaram experiências que a civilização apagou.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Nesta data...



São duas e trinta e seis da manhã. Acordei há pouco com uma luzinha que piscava no telemóvel, avisando uma mensagem sua, a lembrar-me o seu aniversário.

Quando acordo assim de noite fico às voltas na cama a tentar voltar a adormecer. E acabo por me levantar e passar pela cozinha em revista ao frigorífico, na esperança dum copo de leite que me sossegue o vazio que sinto no estômago.

Como amanhã não trabalho (quer dizer, hoje) dou um pulo à sala e reparo na sua fotografia a sorrir para mim. E, uma vez que não devo ter oportunidade de me encontrar consigo durante o dia, para lhe dar um beijo de parabéns, aproveito esta insónia para lhe escrever a contar as novidades que já há muito não dou.

É certo que o trabalho não me tem dado grandes tréguas, o que sempre ajuda a esquecer as saudades. Mas também fui aprendendo ao longo deste tempo a lidar com a sua ausência. A aprender a que não me fizesse falta.

É verdade que me recordo, com um sorriso que não consigo disfarçar, das pequenas coisas que nos fazia (a mim e aos manos).

Do beijo de boa noite e do bom dia sussurrado ao ouvido ao acordar-me com uma festa na cabeça. Das delícias que nos preparava. As laranjas de gelatina, aquelas bolinhas de chocolate às quais chamava Eduardos Nascimentos. As pilhas de banana, marmelada e queijo com um palito espetado. As fatias recheadas (não as douradas, recheadas com carne). O leite condensado em caramelo na porta do frigorífico. 

Do que nos ensinava. Os bolos com farinha peneirada. Aquela seringa que criava várias formas de bolachas de manteiga. Os torrões do açúcar amarelo na caixa azul da despensa. As bolachas Taratas compradas na Manutenção Militar. 

Da mascarilha e da capa de Zorro feitas das suas habilidades, à noite, já tarde, cansada, porque era absolutamente urgente que eu as levasse no dia seguinte para a escola.

Das árvores de Natal e do presépio que nos ensinava a fazer juntos. Em família. Das partidas e brincadeiras que nos mostrava. Do humor que moldou em mim.

Com um sorriso que não consigo disfarçar, mas que se transforma em olhos turvos, como se gotas de chuva na janela pela qual olho sem ver lá fora. Enquanto reparo no que hoje sou, fruto do que deixou seu, em mim. Na coragem e na força que teve que ter para conseguir viver amputada dos seus filhos.

A falta que faz já não é a mim. É aos meus filhos. Quando os olho hoje a crescerem sem a mãe deles por perto. Só porque houve um pai que achou que lhes queria dar o melhor.

Eu o pai. Eu o melhor?

Eu a tentar substitui-la, não em mim, mas nos seus netos. Eu a tentar ser a Mãe que me fugiu e que eu ainda não deixei partir. Nem nunca vou deixar.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

A viagem


Acordávamos antes do sol, com uma festa ternurenta na cabeça, acompanhada de um beijo e um 'Bom dia.' cantado baixinho, pela mãe, aos nossos ouvidos.

Os três pulávamos da cama desviando o sono com ânimos que nos sobravam.

O pai num festim de malas e sacos, sentenciava
'Aviem-se! Aviem-se, senão apanhamos muito trânsito.'

Na garagem dormia o automóvel que nos levaria ao nosso destino. Um Saab 96, branco, ainda com motor a dois tempos e acompanhado duma curiosa carripana de marca Goggomobil com a cor da moda de então. Um azul de roupa interior, que harmonizava quase no perfeito com os armários da cozinha. O pai usava-o em dias de trabalho para se deslocar até à estação do Metro mais próxima de casa.

O carro era empurrado para fora da garagem, com manobras de volante, feitas através da janela do lado do condutor, previamente aberta. O motor desligado, evitava a concentração de gases do escape no interior do seu abrigo.

A partida era um momento solene como se da descolagem dum avião se tratasse.
'Fheee, fheee.', fazia o pai num assobio chocho de apenas ar, assinalando manobras complicadas que careciam de precisões milimétricas.

Eram perto de duzentos e sessenta e oito quilómetros de viagem suados, para quem tinha que conduzir por aquelas estradas nacionais da altura, marcadas por algumas práticas bem dignas de filmes do Far West.

De início, cerca de trinta quilómetros de progresso levavam-nos de Lisboa a Vila Franca. Nesta autoestrada, passávamos por baixo duma pequena ponte que prevenia quedas de sacos, transportados através dum sistema de roldanas, entre duas unidades duma fábrica. Esta era para nós uma marca inequívoca (quase) de que nos dirigíamos à Beira Alta.

De uma forma simples, o itinerário resumia-se a: Lisboa, Leiria, Coimbra e, por fim, Santa Comba Dão. O pai fazia contudo e, quase sempre, variações que eu imaginava servirem para despistar perigosos agentes secretos nossos inimigos.

Ao fim de sensivelmente uma hora, passávamos pela Batalha cujo mosteiro nos alertava pouco faltar para a nossa primeira paragem. Aproveitávamos Leiria para atestar a viatura duma mistura de gasolina e óleo e também as sentinas do café central no cumprimento das nossas fisiológicas carências. No café, os pais compravam Brisas do Lis para oferecemos aos avós. As Brisas eram doces regionais em caixas de dúzia, brancas e com uma fotografia do castelo da cidade à noite.

A seguir a Coimbra havia dois caminhos possíveis: ou atravessando a verdejante serra do Buçaco carregada de frondosas árvores ou fazendo gingar o carro pelas estreitas estradas que passavam na Foz do Dão e serpenteavam pelos montes como víboras. Por aqui, o veneno escolhia sempre a mana (coitada) e obrigava a paragens para práticas regurgitantes.

A chegada começava a ser anunciada com algum tempo de antecedência, recuperando assim em nós a esperança daquela viagem, afinal, poder vir a chegar ao fim. Primeiro quando passávamos a Mealhada, depois o Luso, Mortágua e,...

Finalmente! Santa Comba!

Deixando o cemitério do nosso lado esquerdo, víamos, ao fundo da descida, a igreja matriz, depois o tribunal e o entroncamento mais central da vila a que todos chamavam balcão

(Balcão? Agora, a esta distância afigura-se-me um termo curioso. Só se pela proximidade da Caixa Geral!).

O balcão ramificava-se em cinco artérias e era o sítio mais movimentado do lugar onde se concentravam vários habitantes, em conversas sem urgências e acompanhadas por cigarros fumados pelos homens. Poucas eram as mulheres que se arriscavam a imitá-los, não fosse a vila falar.
À nossa passagem, saudações eram trocadas e, que a nossa chegada iria de imediato ser anunciada, não tínhamos a menor dúvida.

Por fim, a seguir à Casa do Povo, avistávamos a Peneirada, a casa dos avós, na qual viria a viver, ao longo de anos, experiências impossíveis de esquecer.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Da memória que ainda me resta


Não sei se já nasceu comigo ou foi depois crescendo em mim, o prazer de fazer felizes aqueles de quem gosto.
Sempre tive preocupações para que nada (ao meu alcance) lhes faltasse e que tudo corresse bem. Com certeza por resultados da formação transmitida em exemplos de inquietações, medos e dúvidas.
Contudo, só consigo conceber gostar das pessoas quando as respeito e admiro. E calculo que o mesmo aconteça quando me dizem gostar de mim. Caso contrário, será com certeza mais um daqueles casos em que me vão tratar bem só até que consigam o que querem de mim.

Desde sempre quis ter uma família grande e poder contribuir para a alegria de todos. De organizar jantares animados, Natais com magia e receber os amigos lá em casa, sempre que, por qualquer razão, lhes apetecesse aparecer. Cheguei mesmo a dizer a todos que, lá em casa, recebíamos às terças e sábados, como que num romance de Tolstoi.

Quando entrava numa prova de corrida, procurava sempre ajudar aqueles que me acompanhavam, puxando por eles, motivando-os para que conseguissem terminar a corrida. Alguns diriam que não sou competitivo, embora eu sinta que a vida se ganha duma outra maneira.

E desta forma vivi alegre, só por ver os outros ficarem felizes. Muitas vezes até comovido, por gostar mais das pessoas pelo bem que lhes faço do que pelo bem que elas me fazem a mim.

Vi os meus filhos crescer e senti as contrariedades que surgem e são naturais nos adolescentes.
Achava que tudo o que fazia era feito em prol do seu bem-estar (todos nós o achamos) e, consequente, da minha felicidade. Entendia porém (nem todos o entendem) que podia errar e que devia por isso por em causa as minhas convicções como forma de validar estarem estas corretas ou não.
Comecei a sentir que cada vez mais não ligavam ao que dizia. Ouviam-me sem me escutar. Diziam-me que me tinha esquecido, fazendo-me acreditar que a minha memória fugia de mim.    
A dada altura comecei a experimentar um certo mau estar quando frequentava espaços com muita gente. Desejos de fins-de semana sozinho. Necessidades de descansar.

Mas fui teimando e lutando pela vida. E lá reencontrei o meu equilíbrio.

Um dia, mais tarde, em conversa com a minha filha mais nova e tentando passar-lhe aqueles princípios em que acreditava (não me ensinaram outros), senti que o som se dissipava e a visão turvava. E pareceu-me ver os seus olhos húmidos numa expressão de quem tem pena, mas não consegue fazer nada. De quem se sente de mãos atadas.

E só então julguei perceber.

Estou deste lado. Não sei se hoje se há anos. Julgo que estou a falar mas não, apenas recordo conversas longínquas. Por isso só preocupo os que me rodeiam. Tenho que me ver ao espelho. Não me lembro de me ter vestido hoje. Parece não haver comunicação. O meu prato? Não sei se comi ou se me deram de comer. Ela tem ar de quem olha para alguém que não se lembra dela. Mas eu lembro-me. Eu lembro-me de ti filha. Só não consigo falar. Pelo menos na mesma língua. Deves-me achar doente, demente. Se calhar estou. Que raio! Isto de estar para aqui fechado, preso, continuando a adorar a minha filha, mas sem lhe conseguir dizer o que queria dizer. Inútil no amor que sempre lhe quis transmitir.

Não sei se ainda cá estou. Se ainda aí estou. Ou se já morri e só te vejo, ao longe, da memória do que ainda me resta. 

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Da minha janela vejo o mar


Da minha janela vejo o mar. Por vezes sento-me a contemplá-lo, para mim, sempre bonito. Na primavera com aquele azul único, de inverno, quando revolto, com aquelas ondas magníficas e nas noites de verão quando reflete a luz do luar.

E aproximando a visão de mim, vou reparando nos prédios, nas árvores e no gato que passeia pelo muro da casa em frente.
Os meus vizinhos que moram um pouco mais acima na encosta têm uma vista ainda melhor. Conseguem ver o mar, mas também a minha casa.
Quando estava para a comprar ainda pensei ficar com aquela mais elevada, mas era bastante mais cara e além disso já tinha sido reservada pelos atuais donos.

Um dia, estava eu a contemplar esta deslumbrante paisagem, quando a minha vista se cruza com uma das janelas da casa em frente e reparo numa movimentação agitada e acompanhada de gritinhos. Sem conseguir evitar, olho com mais atenção e vejo o casal a brincar, nesses modernos rituais de acasalamento. Ele corria atrás dela e ela a gritava: 'Não! Não!'

Achei que era altura de deixar de espreitar, respeitando assim a privacidade que todos merecemos. Mas entretanto um grito que, me pareceu diferente, sobressaltou-me. Como que de medo, horror.
Olho de novo e vejo que a perseguição do marido tinha acabado no quarto do casal (a janela mais à direita) e a desejada presa deitada na cama. 

'Não! Não!' repetia a mulher.

Mais atenta reparo que ele lhe batia primeiro com empurrões e depois com murros e pontapés. Até que ela se imobilizou, já no chão, no canto do quarto.

Fiquei horrorizada.

Dias mais tarde, encontro aquela minha vizinha no café do bairro, de óculos escuros. Dizia, em conversa com a sua companhia de mesa que se sentia feliz e que, apesar de tudo, sempre tinha alguém com quem falar e que a amava mesmo quando se enervava. E sabia que um dia as coisas iriam melhorar.

Pensei que estas histórias só aconteciam em notícias sensacionalistas daquele canal de televisão de péssima qualidade.

Não consigo entender como se pode viver assim.

Felizmente o José nunca me tocou. Nem eu deixaria. Tivemos outra formação. Muito embora se diga que estas situações não escolhem estrato social. Podem acontecer com um funcionário das finanças ou gestor de conta ou mesmo com ministros.

Mas que vida. Por que é que ela não sai de casa e acaba com tudo aquilo?

Realmente queixamo-nos nós das nossas dificuldades. Eu, felizmente, só tenho problemas de gente comum. Aquilo que me vai apoquentando são as contas e saber como vou arranjar dinheiro para pagar o carro e a casa no fim do mês. E isto se não se lembrarem de me despedir.

Há dias, os meus vizinhos da casa que fica mais acima na encosta convidaram-me para jantar. Quando olhei pela janela, lá observei o mar e também a minha casa. E não sei porquê, imaginei ver-me lá dentro, sentada na mesa da sala, triste, às voltas com as minhas contabilidades.

Em calhando, devia por de lado as minhas desculpas e entregar a casa ao banco, deixar o carro e partir para outra terra à procura de melhor vida. Ainda que mais modesta, que não me fizesse andar a contar os trocos em aritméticas desesperadas. 

De contrário, ainda me acontece ter algum gestor de conta ou mesmo um ministro a correr atrás de mim para me espancar.

É que, a última coisa que quero perder, é a minha dignidade. Ou será que já a perdi?

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Junho de 1967

Era um dia de verão que podia ser o primeiro daquela estação. O calor que se fazia sentir deixava adivinhar a proximidade das sempre tão desejadas férias grandes. O ambiente no jardim infantil era já como se de festa: com mais tempo de recreio que de sala. Eram concedidas autorizações aos mais novos para poderem brincar no espaço habitualmente reservado aos mais crescidos. Tão crescidos que já estavam na primária, o que me fazia olhar para eles como se fossem uma espécie de semideuses. 

Aquele espaço de recreio tinha para mim um valor muito especial. As ameixeiras, aqueles baloiços grandes o trapézio enorme que não me atrevia a tentar alcançar. O cão de guarda que preguiçava na sua casota construída no vão das escadaria. O espaço onde ficava estacionada a carrinha de marca e matrícula OM, para a qual eramos chamados ao fim do dia e que nos levava as nossas casas com a condução cuidada do Sr. Gordinho. Sempre simpático e brincalhão, parecia não se importar que nos enganássemos oferecendo-lhe um 'R' suplementar ao seu nome, por razões da sua silhueta.
Naquele lugar de estacionamento existiam também pequenas capoeiras de onde se ouviam cacarejares que contribuíam para a harmonia daquele nosso primeiro paraíso.

Para suavizar temperaturas e aumentar as alegrias de fim de ano letivo, as professoras decidiram pegar numa mangueira com a qual nos borrifaram entre gritos e correrias felizes.

Recordo a mana mais velha em corridas alegres e saltos fantásticos desde a zona mais alta até à zona que servia de campo de futebol. Uma espécie de corredor que ia desde o portão de entrada, até aquele recanto com bancos, por baixo da escadaria que dava acesso ao primeiro andar da casa principal.
Os seus carrapitos e o vestido de pequenas florzinhas faziam-me achá-la a Anita dos seus livros lá de casa. Lembro, com uma nitidez perpétua, o seu rosto (se fizesse hoje carrapitos ficaria igual com certeza).

Mais tarde, os mais novos (grupo no qual me incluía) regressaram a zona da infantil para lanches de refrescos e bolos.
Quando acabámos, subimos os poucos degraus junto ao lavatório que davam acesso a secretaria e, evitando esta, virámos à direita, passando pela velha cozinha do piso térreo em direção a um pequeno corredor em 'L'. Este dava, por sua vez, acesso a uma casa de banho, a uma arrecadação e a um pequeno compartimento onde deixavam os nossos casacos e cestos. Ainda à porta para a sala da pré-primária em frente e à direita à da sala da infantil, onde entrámos para nos dedicarmos às nossas atividades o resto da tarde.

Entre jogos e peças de teatro, estava eu sentado no chão encostado à parede e ladeado pelos meus amigos, quando sinto duas pessoas crescidas aproximarem-se de mim. Ao olhar para cima reparei serem a minha mãe e a minha educadora.

Num pulo, pus-me de pé e, saltando para o seu colo, abracei a responsável pela minha existência. Passadas as saudações e inerentes ternuras, fui confrontado com aquela pergunta colocada em harmonias ensaiadas: 

'António, quando recomeçar a escola, quer ir para a sala da pré-primária ou prefere ficar mais um ano aqui na infantil?' 

Em segundos varri as memórias que tinha da sala que propunham passar a ser a minha. Os tempos em que era o espaço do meu irmão mais velho. 
Num canto, um balcão com uma balança e uma caixa registadora, faziam a mercearia onde se podia adquirir os produtos necessários para cozinhar, por exemplo, um bolo. No canto ao lado era simulada uma pequena cozinha na qual se produziam as receitas previamente decididas pela educadora.  

A voz da minha mãe trouxe-me de volta, ‘Preferes a pré-primária ou ficar mais um ano aqui na infantil, António?’

Foi sem dúvida a primeira grande decisão da minha vida, 
'Quero ficar nesta sala.', 
respondi eu ainda entre hesitações de crescimentos e amigos que ficavam.

Feitas hoje as contas às arrecuas, passava eu na altura pelos quatro anos da minha vida.

Recordo, ou julgo recordar, episódios mais longínquos. Contudo, sem certezas de terem sido experiências memorizadas por si mesmo ou através de relatos feitos a posteriori em explicações de fotografias.

Sendo esta a recordação mais remota que tenho de mim, é provida duma clareza quase impossível que não consigo ter de alguns episódios do dia de hoje. 

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Carpen Diem com fiel


Há cerca de três meses, entendi que poderia ser para mim salutar, dedicar-me a escrever sobre mim e sobre a forma como vejo as coisas. Como uma das principais vantagens teria aquilo a que chamei a eliminação das minhas toxinas mentais (catarse, como diria certamente um profissional).

Pensei que bastaria escrever só para mim, mas logo percebi que se o fizesse também para os outros, obrigar-me-ia a ser mais natural e mais claro nas minhas exposições. Um pouco como: ‘Se consegui explicar a alguém foi porque entendi bem a lição.’

Por outro lado, teria o ganho das pessoas me conhecerem melhor (para o bem e para o mal), fazendo com que não imaginassem sobre mim o que quisessem e que soubessem que eu não penso delas o pior que elas acham de si.

Tinha, contudo, que ser disciplinado sob pena desta atividade terapêutica se vir a tornar num sol de pouca dura. Decidi então que teria de me obrigar a escrever uma vez por semana, sem desculpas.


E eis-me aqui hoje, ao fim de quinze semanas, às voltas, sem saber o que escrever.

Parece-me óbvio ser um erro, estar aqui a pensar nos possíveis temas para o escrito da semana. O que faz sentido, sim, é anotar os efeitos das minhas reflexões e, a partir destes, então compor um texto que, por sua vez, terá associado um determinado tema.

O caminho da procura de um tema para apenas dizer alguma coisa, só para cumprir calendário, é pois uma má abordagem. E artificial, por quanto tento forçar aquilo que não é uma obrigação. Ao contrário, parece-me que as coisas devem fluir dum natural pensamento para depois serem arrumadas e assim expostas.

Como aliás em qualquer outra atividade que tenhamos na vida. A nossa profissão, por exemplo, não deverá ser um conjunto de práticas rotineiras movidas somente pela obrigação, pois logo se tornarão artificiais e sem grande interesse, quer na execução, quer no resultado.

Estas, sendo artificiais (e consequentemente não naturais) vão-nos adormecendo num quotidiano de repetições e comodidades que nos vão consumindo a vida só por consumir.

Eis que surgem então as velhas máximas (tão velhas que já em língua morta) como o Carpe Diem. E outras que nos fazem ver que melhor do que fazermos aquilo que nos dá gozo é gostarmos daquilo que fazemos. E daqui decorre uma maior qualidade do nosso trabalho.

Tal pode explicar dificuldades de eruditos ao porem em prática as ideias estudadas, em oposição aos cultos que, após compreenderem os vários aspetos que os rodeiam, têm, habitualmente, ideias próprias e naturais.

Sei que o resultado do que é natural é melhor. Mas sei também que sem a artificialidade do empurrar, as coisas não acontecem.

E lá vamos nós, uma vez mais, olhar o fiel a fim de determinarmos proporções ideais. Como que o ponto de gravidade que qualquer corpo tem.

A partir de hoje, vou passar a seguir este princípio de me orientar, começando pelo que é natural para a seguir fazê-lo acontecer através de imposições artificiais.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A razão dos netos


Foi num domingo de dezembro. Tínhamos um almoço combinado. Entre filhos de sempre e já dois novos (genro e nora), lá foram chegando enquanto o assado perfumava a casa com aromas de inverno em família. Alguns petiscos para entrada iam aparecendo em cima da mesa da cozinha. É engraçado reparar na crescente importância que esta divisão da casa tem como espaço de concentração e convívio.

Sem pressas, como convém a estes nossos dias de descanso, a filha mais velha saiu acompanhando a cunhada por aparentes urgências de compras de última hora no supermercado do bairro. Enquanto o segundo filho me pedia ajuda lá fora para trocar a escova limpa vidros do seu carro. Por azar o modelo que tinha comprado não se ajustava, o que, curiosamente, não pareceu ser assunto de transtorno.

Entrementes, reparo que procurava a minha atenção 

     'Pai!...'

Olhei para ele e reparei num olhar especial que dificilmente alguma vez esquecerei.

     'Pai, a minha mulher está grávida'

De imediato senti um estremeção e obriguei o termóstato das minhas emoções a baixar ao mínimo que me foi possível e perguntei-lhe, 'Sabes que será uma enorme mudança na vossa vida. Que, por sinal, não anda fácil para ninguém. É mesmo isso que vocês querem?'
Aquele filial olhar dizia, sem quaisquer equívocos, tudo. Mas ainda assim respondeu 'Sim pai. Já pensamos e falamos os dois. Sabemos que a mudança é colossal, mas gostamos muito um do outro e é tudo o que mais queremos.'

Posto tal, dei como que um biqueiro no regulador interno dos meus sentimentos e apertámos as nossas felicidades num amplexo de pai e filho.
Entrámos em casa e seguiram-se olhares de soslaio, parabéns e abraços discretos, pois a novidade, aos mais novos, seria dada com outra preparação e em altura solene, de maiores certezas clínicas.

Nos dias e meses que se seguiram, a baba abundava em mim. Uma certa tendência para achar que compreendia tudo o que iria acontecer. Afinal já tinha sido pai umas quantas vezes e tratava-se de experiência que não me era rara. Acho que deve ser a reação de qualquer um que sabe vir a ser avô. 

Mas não, havia qualquer coisa que sentia ter que ser diferente. Não devia tentar intrometer-me e substituir o papel dos futuros pais, muito embora devesse estar atento a necessidades de ajuda e pedidos de conselhos.

Acompanhei sessões de ecografias e relatos de tudo estar a correr bem, até que o dia da espera, na sala do hospital, chegou.
Ao fim de horas de conversa, lanches improvisados e cafés, entrecortados por notícias trazidas pelo futuro pai que acompanhava lá dentro todos os acontecimentos, chegou a novidade. Nos primeiros minutos já dum novo dia, a notícia foi transmitida pelas enfermeiras que vieram fumar o cigarro da vitória do nascimento da minha neta.

Vi-a pela primeira vez passadas algumas horas, já na tarde daquele domingo em que nasceu. Era linda e queria pegar-lhe ao colo, mas consegui lembrar-me de respeitar a mãe. Para meu espanto e mais uma dose de felicidade aquela minha nova filha disse-me para pegar naquela bebé linda. E assim o fiz com todas as cautelas para impedir danos por babas que me sobravam.

Seguiram-se tempos de biberons, mudanças de fraldas, banhos, papas, os primeiros dentes. A primeira noite passada casa dos avós. Um fim de semana inteiro.

Mas ser avô não é como ser pai. Nem sequer pai duas vezes, como há quem afirme. Só talvez a ténue semelhança de não se saber o que vai acontecer. Mas ainda assim achar que se sabe.

Os netos não existem para recordarmos tempos de filhos. Para lhes fazermos o que esquecemos ou não conseguimos quando foi a nossa vez.
São sim uma continuação dos nossos e consequentemente de nós. Fazem-nos sentir a alegria, mas também as dores dos nossos filhos.
Acompanhei a experiência de uma avó que viu o seu neto, com alguns dias apenas, a ter de ser submetido a uma intervenção cirúrgica e percebi a seu desespero. Se alguma coisa corresse mal como é que iria ficar o seu filho. Quase como se preferisse substitui-lo. Que fosse antes com um seu filho e não com um neto.

Os netos fazem acontecer coisas maravilhosas. Fazem pais querer construir lares onde possam fazer crescer alegrias. Fazem pais ficar emocionados ao receberem um telefonema do irmão por saudades de dois anos de viagens. Fazem pais convidar irmãos para padrinhos.

Fazem-nos ver crescer ramos e folhas duma mesma árvore e testemunhar o quanto vale a pena lutar por ter uma família.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Teoria do calçado


Quando era criança e, por alturas do Natal, me levavam ao circo, costumava ficar cristalizado com as representações dos mágicos, como era hábito chamar-lhes na altura. Ao contrário da maior parte da criançada (e talvez alguns congéneres adultos) que ansiava pela chegada dos palhaços, eu admirava aquela arte e tentava em vão descobrir truques e ilusões. 

Mais tarde, quando li a primeira história de Sherlock Holmes, fiquei fascinado com a sua ciência da dedução. Conjugações de caminhares, idades, estilos de barba e tatuagens certas, determinavam, com elevado intervalo de confiança, tratar-se, por exemplo, da aproximação de um sargento da marinha, reformado.

Estas eram duas atividades que exigiam o gosto e a capacidade de reparar nas coisas e daí retirar algumas conclusões, senão mesmo resolver mistérios.

Contudo, fui confrontado com um sentimento ambíguo, não conseguindo perceber o porquê de tanto esforço quando, afinal, com uma simples apreciação do que uma pessoa traz calçado, se conseguir perceber o tipo da pessoa observada.

Existe, realmente, uma estreita relação entre o carácter da pessoa e o calçado que ela usa.

E não se trata de uma questão de gosto. Nem de quem o usa nem de quem o contempla. Uma pessoa pode apreciar muito um determinado calçado, mas este não se enquadrar esteticamente com a sua silhueta e vestuário usado. Sendo isto indicador dum maior ou menor sentido de estética da pessoa, e consequentemente características de arrumação de ideias.
Por exemplo. Eu gosto de ver socas, há quem goste de as usar, mas sendo peças pesadas, não harmonizam com pernas demasiadamente magras (na hipótese de saias em vez de calças).

Por outro lado, a moda adotada por cada um associa, sem grandes margens para erros, a pessoa a um determinado grupo padrão. O caso dos jovens estudantes que usam (todos eles) a mesma marca de ténis é um simples exemplo deste caso. 

Julgo também ser inquestionável o efeito que uns sapatos de salto alto produzem em pernas femininas, realçando as suas formas e tornando-as mais elegantes. Mas usá-los em momentos em que é necessário conforto, como por exagero numa caminhada, pode evidenciar um desnorte da capacidade de decisões.

Comprar um par de sapatos ou botas, de valor mais elevado, é meio caminho para se ter exemplares mais bonitos. Ainda assim, creio que já todos vimos o efeito de calçado de marca cara a ser sumariamente aniquilado por uma má conjugação, quer de estética quer de ocasião.

Certo dia, estava eu com um grupo de amigos a festejar uma qualquer situação, quando atento, numa das presentes, aquela que tinha sido a sua melhor escolha de calçado para a ocasião. De imediato, comentei com um amigo, a quem já tinha tido oportunidade de explicar o meu ponto de vista: 'Repara no que a nossa amiga traz calçado. Tem ou não tudo a ver com o que ela é?'

Este meu amigo que muito prezo e que não facilmente se verga perante tão grandes evidências, sem que recorra a preleções argumentativas várias, lá retorquiu, 'A tua teoria, de nada me serve, porque antes de a ter visto com estes sapatos, já eu sabia que ela teria este tipo de calçado.'

De tão singela forma, o meu amigo acabava assim de comprovar esta minha teoria do calçado.

E não doutor, não voltei a ouvir vozes a sair das torneiras. Muito embora não veja que mal possa isso ter, se por vezes as oiço dentro da minha cabeça. Como se o cérebro tivesse um lapso e as guardasse diretamente na memória de longo ou médio prazo, para mais tarde as lembrar na memória imediata e, dessa forma, me dar a sensação de estarem a ser emitidas nesse momento e sem que ninguém por perto esteja.


É que, caramba, o material também se desgasta.