sábado, 28 de fevereiro de 2015

Experiências que a civilização apagou


Mais tarde ou mais cedo, irá acontecer.
E eu, como muitos, vou esperando que o dia passe. Que mais um dia passe. Quantos mais? Quanto tempo mais?

Hoje tenho três reuniões que ainda preciso preparar e um almoço que me é importante. Hoje não me dá jeito. Não tenho vagar. Vou ter que deixar para amanhã ou, se calhar, para um outro dia.

Vivemos num termo algures entre o conformados e o enganados. Mas enganados por nós próprios. Por ser mais fácil arranjar falsas explicações que nos convençam estarmos bem, do que nos fazermos melhores pessoas.
Não conheço quem não diga viver na melhor terra, no melhor bairro. Ter o melhor médico (todos eles chefes de serviço no hospital). Os filhos na melhor escola (onde também anda a filha do ministro).

Dizer o contrário seria como que admitir o erro próprio. O ter falhado. E não alimentar a crença naquilo que nos faz felizes. Não poder ser reconhecido pelos outros.

Mas um certo fel me vai invadindo o paladar do espírito. Um estado de angústia crescente que finjo não entender só porque, hoje, não tenho tempo. Ou o tempo que não tenho é inventado para que não tenha que entrar nesta arena e conseguir vencer mais esta fera do momento.

Estas interrupções de emoções e instintos comutadas em exercícios da razão são, a meu ver, contranatura. E por isso as adiamos na esperança vã de que a vida nos resolva as vontades.

No entanto, quanto mais tempo passa mais flacidez é acumulada na nossa mente. E, consequentemente, o inevitável será sem dúvida mais sofrido.

O que fazer então? Que ideia ter quando nem mais um sal se dilui e o nível de saturação parece já ter atingido o seu máximo.
                                                         
Chegámos a um ponto em que urgem pensamentos estranhos. É hora de ideias absurdas. Tanto quanto um ovo convenientemente rachado garante o próprio equilíbrio.

A imitação ou mesmo a adaptação das ideias alheias não bastam nem resultam senão na confirmação do esgotado.
O conceito do reinventar que tanto se vai usando nos dias de hoje, já não tem lugar eficaz. Teremos mesmo que inventar, como que do zero.

De nada serve mudarmos de morada, trabalho ou mesmo de amigos. A solução tem que passar por vivermos de uma outra forma. Mais ainda que olharmos a vida de uma outra perspetiva, temos que a viver duma maneira que ninguém ainda conhece. Ou porque realmente nunca existiu ou porque aqueles que conheceram essa fórmula, já há muito partiram e não deixaram experiências que a civilização apagou.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Nesta data...



São duas e trinta e seis da manhã. Acordei há pouco com uma luzinha que piscava no telemóvel, avisando uma mensagem sua, a lembrar-me o seu aniversário.

Quando acordo assim de noite fico às voltas na cama a tentar voltar a adormecer. E acabo por me levantar e passar pela cozinha em revista ao frigorífico, na esperança dum copo de leite que me sossegue o vazio que sinto no estômago.

Como amanhã não trabalho (quer dizer, hoje) dou um pulo à sala e reparo na sua fotografia a sorrir para mim. E, uma vez que não devo ter oportunidade de me encontrar consigo durante o dia, para lhe dar um beijo de parabéns, aproveito esta insónia para lhe escrever a contar as novidades que já há muito não dou.

É certo que o trabalho não me tem dado grandes tréguas, o que sempre ajuda a esquecer as saudades. Mas também fui aprendendo ao longo deste tempo a lidar com a sua ausência. A aprender a que não me fizesse falta.

É verdade que me recordo, com um sorriso que não consigo disfarçar, das pequenas coisas que nos fazia (a mim e aos manos).

Do beijo de boa noite e do bom dia sussurrado ao ouvido ao acordar-me com uma festa na cabeça. Das delícias que nos preparava. As laranjas de gelatina, aquelas bolinhas de chocolate às quais chamava Eduardos Nascimentos. As pilhas de banana, marmelada e queijo com um palito espetado. As fatias recheadas (não as douradas, recheadas com carne). O leite condensado em caramelo na porta do frigorífico. 

Do que nos ensinava. Os bolos com farinha peneirada. Aquela seringa que criava várias formas de bolachas de manteiga. Os torrões do açúcar amarelo na caixa azul da despensa. As bolachas Taratas compradas na Manutenção Militar. 

Da mascarilha e da capa de Zorro feitas das suas habilidades, à noite, já tarde, cansada, porque era absolutamente urgente que eu as levasse no dia seguinte para a escola.

Das árvores de Natal e do presépio que nos ensinava a fazer juntos. Em família. Das partidas e brincadeiras que nos mostrava. Do humor que moldou em mim.

Com um sorriso que não consigo disfarçar, mas que se transforma em olhos turvos, como se gotas de chuva na janela pela qual olho sem ver lá fora. Enquanto reparo no que hoje sou, fruto do que deixou seu, em mim. Na coragem e na força que teve que ter para conseguir viver amputada dos seus filhos.

A falta que faz já não é a mim. É aos meus filhos. Quando os olho hoje a crescerem sem a mãe deles por perto. Só porque houve um pai que achou que lhes queria dar o melhor.

Eu o pai. Eu o melhor?

Eu a tentar substitui-la, não em mim, mas nos seus netos. Eu a tentar ser a Mãe que me fugiu e que eu ainda não deixei partir. Nem nunca vou deixar.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

A viagem


Acordávamos antes do sol, com uma festa ternurenta na cabeça, acompanhada de um beijo e um 'Bom dia.' cantado baixinho, pela mãe, aos nossos ouvidos.

Os três pulávamos da cama desviando o sono com ânimos que nos sobravam.

O pai num festim de malas e sacos, sentenciava
'Aviem-se! Aviem-se, senão apanhamos muito trânsito.'

Na garagem dormia o automóvel que nos levaria ao nosso destino. Um Saab 96, branco, ainda com motor a dois tempos e acompanhado duma curiosa carripana de marca Goggomobil com a cor da moda de então. Um azul de roupa interior, que harmonizava quase no perfeito com os armários da cozinha. O pai usava-o em dias de trabalho para se deslocar até à estação do Metro mais próxima de casa.

O carro era empurrado para fora da garagem, com manobras de volante, feitas através da janela do lado do condutor, previamente aberta. O motor desligado, evitava a concentração de gases do escape no interior do seu abrigo.

A partida era um momento solene como se da descolagem dum avião se tratasse.
'Fheee, fheee.', fazia o pai num assobio chocho de apenas ar, assinalando manobras complicadas que careciam de precisões milimétricas.

Eram perto de duzentos e sessenta e oito quilómetros de viagem suados, para quem tinha que conduzir por aquelas estradas nacionais da altura, marcadas por algumas práticas bem dignas de filmes do Far West.

De início, cerca de trinta quilómetros de progresso levavam-nos de Lisboa a Vila Franca. Nesta autoestrada, passávamos por baixo duma pequena ponte que prevenia quedas de sacos, transportados através dum sistema de roldanas, entre duas unidades duma fábrica. Esta era para nós uma marca inequívoca (quase) de que nos dirigíamos à Beira Alta.

De uma forma simples, o itinerário resumia-se a: Lisboa, Leiria, Coimbra e, por fim, Santa Comba Dão. O pai fazia contudo e, quase sempre, variações que eu imaginava servirem para despistar perigosos agentes secretos nossos inimigos.

Ao fim de sensivelmente uma hora, passávamos pela Batalha cujo mosteiro nos alertava pouco faltar para a nossa primeira paragem. Aproveitávamos Leiria para atestar a viatura duma mistura de gasolina e óleo e também as sentinas do café central no cumprimento das nossas fisiológicas carências. No café, os pais compravam Brisas do Lis para oferecemos aos avós. As Brisas eram doces regionais em caixas de dúzia, brancas e com uma fotografia do castelo da cidade à noite.

A seguir a Coimbra havia dois caminhos possíveis: ou atravessando a verdejante serra do Buçaco carregada de frondosas árvores ou fazendo gingar o carro pelas estreitas estradas que passavam na Foz do Dão e serpenteavam pelos montes como víboras. Por aqui, o veneno escolhia sempre a mana (coitada) e obrigava a paragens para práticas regurgitantes.

A chegada começava a ser anunciada com algum tempo de antecedência, recuperando assim em nós a esperança daquela viagem, afinal, poder vir a chegar ao fim. Primeiro quando passávamos a Mealhada, depois o Luso, Mortágua e,...

Finalmente! Santa Comba!

Deixando o cemitério do nosso lado esquerdo, víamos, ao fundo da descida, a igreja matriz, depois o tribunal e o entroncamento mais central da vila a que todos chamavam balcão

(Balcão? Agora, a esta distância afigura-se-me um termo curioso. Só se pela proximidade da Caixa Geral!).

O balcão ramificava-se em cinco artérias e era o sítio mais movimentado do lugar onde se concentravam vários habitantes, em conversas sem urgências e acompanhadas por cigarros fumados pelos homens. Poucas eram as mulheres que se arriscavam a imitá-los, não fosse a vila falar.
À nossa passagem, saudações eram trocadas e, que a nossa chegada iria de imediato ser anunciada, não tínhamos a menor dúvida.

Por fim, a seguir à Casa do Povo, avistávamos a Peneirada, a casa dos avós, na qual viria a viver, ao longo de anos, experiências impossíveis de esquecer.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Da memória que ainda me resta


Não sei se já nasceu comigo ou foi depois crescendo em mim, o prazer de fazer felizes aqueles de quem gosto.
Sempre tive preocupações para que nada (ao meu alcance) lhes faltasse e que tudo corresse bem. Com certeza por resultados da formação transmitida em exemplos de inquietações, medos e dúvidas.
Contudo, só consigo conceber gostar das pessoas quando as respeito e admiro. E calculo que o mesmo aconteça quando me dizem gostar de mim. Caso contrário, será com certeza mais um daqueles casos em que me vão tratar bem só até que consigam o que querem de mim.

Desde sempre quis ter uma família grande e poder contribuir para a alegria de todos. De organizar jantares animados, Natais com magia e receber os amigos lá em casa, sempre que, por qualquer razão, lhes apetecesse aparecer. Cheguei mesmo a dizer a todos que, lá em casa, recebíamos às terças e sábados, como que num romance de Tolstoi.

Quando entrava numa prova de corrida, procurava sempre ajudar aqueles que me acompanhavam, puxando por eles, motivando-os para que conseguissem terminar a corrida. Alguns diriam que não sou competitivo, embora eu sinta que a vida se ganha duma outra maneira.

E desta forma vivi alegre, só por ver os outros ficarem felizes. Muitas vezes até comovido, por gostar mais das pessoas pelo bem que lhes faço do que pelo bem que elas me fazem a mim.

Vi os meus filhos crescer e senti as contrariedades que surgem e são naturais nos adolescentes.
Achava que tudo o que fazia era feito em prol do seu bem-estar (todos nós o achamos) e, consequente, da minha felicidade. Entendia porém (nem todos o entendem) que podia errar e que devia por isso por em causa as minhas convicções como forma de validar estarem estas corretas ou não.
Comecei a sentir que cada vez mais não ligavam ao que dizia. Ouviam-me sem me escutar. Diziam-me que me tinha esquecido, fazendo-me acreditar que a minha memória fugia de mim.    
A dada altura comecei a experimentar um certo mau estar quando frequentava espaços com muita gente. Desejos de fins-de semana sozinho. Necessidades de descansar.

Mas fui teimando e lutando pela vida. E lá reencontrei o meu equilíbrio.

Um dia, mais tarde, em conversa com a minha filha mais nova e tentando passar-lhe aqueles princípios em que acreditava (não me ensinaram outros), senti que o som se dissipava e a visão turvava. E pareceu-me ver os seus olhos húmidos numa expressão de quem tem pena, mas não consegue fazer nada. De quem se sente de mãos atadas.

E só então julguei perceber.

Estou deste lado. Não sei se hoje se há anos. Julgo que estou a falar mas não, apenas recordo conversas longínquas. Por isso só preocupo os que me rodeiam. Tenho que me ver ao espelho. Não me lembro de me ter vestido hoje. Parece não haver comunicação. O meu prato? Não sei se comi ou se me deram de comer. Ela tem ar de quem olha para alguém que não se lembra dela. Mas eu lembro-me. Eu lembro-me de ti filha. Só não consigo falar. Pelo menos na mesma língua. Deves-me achar doente, demente. Se calhar estou. Que raio! Isto de estar para aqui fechado, preso, continuando a adorar a minha filha, mas sem lhe conseguir dizer o que queria dizer. Inútil no amor que sempre lhe quis transmitir.

Não sei se ainda cá estou. Se ainda aí estou. Ou se já morri e só te vejo, ao longe, da memória do que ainda me resta.