E
chegávamos a casa dos avós na Beira Alta. O carro cansado detinha-se em frente
ao portão de madeira pintado de verde.
Entrávamos
para o jardim feito de pequenos caminhos entre os canteiros desenhados pelos
buxos com aquele cheiro único, ainda hoje, irremediavelmente gravado na minha
memória. Um aroma que me acompanhava quando andava no triciclo azul que havia
sido do pai e, mais tarde, no verão ou naquelas manhãs de inverno brancas de
geada.
Os
avós recebiam-nos como que sobreviventes duma longa batalha e com saudades como
se fossem de anos.
A
avó Têca que sempre nos ensinou como
uma notável austeridade podia conviver com um imenso carinho, não escondia a
felicidade de nos ver. Eternamente preocupada com a nossa boa saúde e
crescimento que resolvia com dietas imensas de delícias inigualáveis. Ao mesmo
tempo apontava-nos o dedo decidido e sentenciava 'Estás magro que nem um cão.
Tens que comer mais.'
O
avô Domingos de fato completo preto, com a correia doirada do relógio pendurada
no colete e lunetas adaptadas aos óculos, vivia permanentemente ocupado entre
jornais enormes e escritas que levava a cabo sentado na secretária de madeira
escura do seu escritório. Nunca percebi bem qual era a sua profissão até que um
dia me atrevi e perguntei: 'O avô é engenheiro?', Com um sorriso bem-disposto,
respondeu: 'Eu, engenheiro? Eu, quanto muito, sou engenhocas.'
Aprendi
mais tarde que fazia peças lindíssimas em madeira com desenhos feitos de
encaixes perfeitos. Como aquele pequeno castelo que sempre vi em cima da sua
secretária, com ameias e uma torre ao centro na qual, entre paredes, entrava,
como luva, um relógio de bolso. Guardava nele, entre cartas, sinetes e pequenas
barras de lacre de cor avermelhada.
Também
a gaiola dos pássaros numa prateleira na varanda que era réplica da própria
casa havia sido construída por aquele meu parente que eu tanto respeitava.
A
varanda era aquela divisão da casa típica da Beira Alta, toda ela janelas
viradas a sul, onde secava a marmelada num sem número de malgas de barro, tapadas
por uma folha de papel vegetal previamente embebida em aguardente. Também lá,
se encontravam as melhores seleções de pevides, restos dos melhores melões que
havíamos comido e que secavam distribuídas por pedaços de jornais em cima duma
cómoda.
Outra
das soberbas obras era o Mahjong, com as peças impecavelmente cortadas. Uma
metade em madeira escura colada a outra de madeira clara. A avó tinha
contribuído com as suas habilidades, pirogravando as cento e quarenta e quatro
pecas, entre chinas e bambus, dragões e ventos.
Para
além do escritório, o avô tinha uma oficina com todo o tipo de ferramentas.
Entre alicates, tornos, formões e martelos, nada faltava para a confeção dos
seus tesoiros de madeira.
A
diversidade de atividades não se esgotava, contudo, aqui. Na oficina havia
também um armário repleto de frascos de vidro como os da farmácia. Uns
transparentes outros azuis-escuros e outros ainda castanhos. Cada um com rótulo
de papel manuscrito a anunciar os químicos que encerrava. O pai explicou-me que
serviam para experiências e aplicações nas várias plantações que havia na
quinta.
Mas
o instrumento que mais me maravilhava era uma máquina para revelar
daguerreótipos, acompanhada das chapas e produtos necessários. A janela daquela
divisão tinha mesmo uma pequena portinhola com um vidro encarnado que visava
deixar a oficina em modo de câmara escura.
O
quarto onde me lembro ter dormido as primeiras vezes naquela casa de sonho, era
ainda o dos pais. Ficava no andar mais alto, por cima do escritório e era
frequente darmos com passarinhos a esvoaçarem lá dentro, talvez por ter junto
às janelas os ramos da maior das árvores do jardim. Por isso chamávamos-lhe o
Quatro dos Passarinhos.
A
cama onde eu dormia (na altura, ainda de grades) ficava ao canto, do lado
direito da de casal, do lado onde dormia a mãe. Aquele quarto tinha, para além
da habitual cómoda e guarda-vestidos, um móvel cuja parte superior de mármore
tinha um lavatório, ainda que sem água corrente. Para o encher, tínhamos jarros
de esmalte trazidos do andar térreo e, para o despejar, retirávamos a tampa,
fazendo escorrer a água para um balde que se encontrava no armário existente
por baixo.
'Vamos
para a mesa!' chamou a avó.
De
verão, as refeições eram servidas na sala de jantar, em vez de na sala de estar
onde, de inverno, aproveitávamos o calor da braseira. Era uma sala com painéis
de madeira a toda a volta com uma altura média dum homem adulto e com um
pequeno rebordo onde se expunham loiças decorativas. Ao canto havia uma lareira
que raramente vi em funcionamento.
A
mesa, posta com o rigor do quotidiano daquela casa, contava com alguns
pormenores engraçados como os descansos onde se apoiavam, do lado direito, as
facas e a colher de sopa. Cada um dos comensais tinha também, junto aos copos,
uma pequena tijela com água na qual lavava as cerejas (ou outra fruta) à medida
do seu apetite.
No
dia daquela nossa chegada o almoço era ainda mais elaborado, resultado das
orientações rigorosas da avó. A sopa era obrigatória, um prato de peixe e um de
carne, seguidos depois dum doce e, finalmente, da fruta.
No
fim havia sempre o ritual do café feito em balão. Todos assistíamos
maravilhados quando o avô acendia a lamparina colocada por baixo do recipiente
inferior fazendo ferver a água que, por sua vez, subia à parte superior onde se
encontrava o café moído. Depois bastava esperar que o líquido, já escuro,
descesse enquanto a sala era invadida pelo aroma único do café.
Enquanto
os mais velhos o terminavam de beber o café, o pai perguntou:
'Quem quer ir a seguir lá abaixo ver a quinta?'
criando de imediato uma agitação de felicidade extra nos três irmãos.