terça-feira, 22 de novembro de 2016

Quando a saudade atinge a maioridade

Faz hoje 18 anos que partiste… a meio da noite anunciaram-me que não estavas mais connosco.
Na realidade, há muito que não estavas. Permanecia apenas uma sombra distorcida da pessoa que tinhas sido. 

Fui-te perdendo sem saber que te perdia.

Mas há 18 anos, até sem essa sombra fiquei.

Hoje, a saudade atingiu a maioridade, mas não a independência – ainda mora aqui comigo!

Olhando para trás, a maturidade do presente queria voltar atrás e revisitar a (i)maturidade do passado e dizer o quanto gosto de ti e quanto quero que estejas na minha vida.
Sinto falta do que não vivemos. Não conheces os meus filhos e isso é uma falha grave cujo responsável é o tempo e a sua urgência.

Achei que nunca partirias, que nunca me irias deixar. Ou achei que só o farias mais tarde… fiz mal as contas, esqueci-me que entrei tarde na tua vida!

Cinco anos após a tua partida, vi-te voltar para mim. Estavas como sempre te conheci – elegante e distinto.
Vieste porque sabias que eu estava de coração rasgado. Entraste nos meus sonhos, reconfortaste-me e prometeste que iria ficar tudo bem.
Para teres a certeza que eu prestei atenção quando me revisitaste, dei o teu nome ao teu neto. Dar o teu nome ao meu filho foi a forma de perpetuar o teu regresso.

Que bom foi ter-te de volta!

Hoje, a saudade atingiu a maioridade...
...apenas ficou maior, não passou, nem foi embora!












quinta-feira, 9 de abril de 2015

A aparição dos meus anjos


Quando era pequeno, explicaram-me os anjos. Seres celestiais, mensageiros de Deus, junto de nós, pobres mortais. Brancos, com caracóis loiros e grandes asas de penas. Detentores de uma beleza delicada e que emanam forte brilho. Discutir o seu sexo é sinónimo de perda de tempo, pois todos sabemos que não o têm. Embora invisíveis, estão por perto, com a missão de nos protegerem.

É certo que nem todos conseguem sentir os seus anjos, mas eu sinto os meus. E sinto-os especiais. Diferentes das imagens dos livros da catequese e das estátuas nos altares das igrejas. Sinto-os jovens a brincarem entre gargalhares e pulos divertidos. Gritinhos e brinquedos caídos no chão. À noite, enquanto durmo, sou visitado por eles. Desperto do meu profundo sono com um som que me chega das alturas, num canto a duas vozes, por vezes acompanhado pela melodia de um violino.

No início fui sentindo-os. Até que chegou o dia em que se deu a aparição dos meus anjos.

Foi à entrada do nosso prédio. Tinham cabelos aos caracóis, não loiros, mas castanhos. Duas meninas, irmãs (afinal tinham sexo). Vinham acompanhadas pelos pais e, em vez de asas, traziam mochilas às costas. Duma gentileza pouco habitual nos jovens de hoje saudaram-me com um sorriso simpático enquanto me seguravam na porta para eu sair.

Então reparei que só as suas tenras idades me impediam de as achar uma encarnação das irmãs da Gata Borralheira que apareciam nos filmes de animação da minha infância. Um pouco como os cães abandonados, vadios e pulguentos que, quando cachorrinhos são sempre fofinhos. O futuro, contudo, adivinhava-se com facilidades de vidente de feira, bastando observar o desmazelo da mãe, próprio das mulheres que foram abandonadas pela vida e o nanismo do pai que parecia ser a sua maior característica.

Era então aquela dupla a responsável pelos gritos que ouvíamos no andar de cima. Passagens de modelos com os sapatos de salto, certamente subtraídos ao armário da mãe. Berlindes (abafadores aposto) atirados ao chão. Cânticos em si maior que, como toda a gente sabe, é a tonalidade imperfeita do demónio. Já para não falar quando assistimos a jogos de futebol decisivos e nos restam apenas sensações de prazer interrompido por anúncios prematuros de golos. Frustrações motivadas pelas diferentes velocidades dos sinais das televisões conjugadas com uma completa ausência de sensibilidade para a acústica.

Curiosamente, os pais não se ouviam. Nem sequer em intervenções próprias da prática da educação de duas filhas. Talvez já se tivessem rendido. Desistido daquilo que é, a todos, difícil de fazer. Demitido das funções de progenitores educadores. Ou, simplesmente, nunca tivessem sido eles próprios ensinados ou procurado aprender.

Naquele dia, segui o meu caminho incomodado pelo facto de, lá em casa, não termos o sossego que entendo todos merecermos ter nos nossos lares. E quando quase chegava ao trabalho, subindo em passo acelerado a principal avenida da cidade, reparei que junto a um banco do jardim, no chão, dormia um homem (não um velho) alguém duma idade não determinável. À sua volta os seus anjos protetores depenicavam no chão tudo o que pudesse ser resto do seu alimento. Afastei os pensamentos habituais, mas imaginei que um dia, aquele homem que se afastava, sem dúvida, da humanidade por necessidades de adaptação, teria tido com certeza uma casa, talvez mesmo um lar.

Se calhar, quando voltar do trabalho ao fim do dia, compro um saco de pães e desfaço um deles para dar aos anjos cinzentos que protegem o homem que vive debaixo do banco.

E o resto, em chegando a casa, vou ao andar por cima e ofereço-o às duas meninas de caracóis como sinal do meu agradecimento, por viverem, mesmo que entre gritos e pulos, por cima do teto que ainda tenho a sorte de ter. E que me abriga de anjos cinzentos.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Hoje lembrei-me de ti

Hoje lembrei-me de ti. Não porque faças anos. Nem porque seja Natal ou qualquer outra data obrigatória. Nada preciso pedir-te ou combinei contigo. Apenas me lembrei de ti.

Não sei exatamente porquê. Talvez porque um dia me disseste aquilo. Lembras-te? Aquilo que eu precisava ouvir e nem sequer o imaginava. E, no entanto, depois de o dizeres, pareceu-me tão óbvio. O teres reparado. O teres-me feito sentir bem. Com algum valor. O reconhecimento que outros não notaram, o conforto que me criaste.

Hoje lembrei-me de ti.

Porque um dia deixaste uma marca em mim, dando-me uma parte de ti. E assim, de algum modo, ficaste (para sempre) comigo, algures num contorno da minha própria forma.

Alguns teriam dito 'Ultimamente não tenho tido muito tempo para amizades, pois tenho andado ocupado com os ódios do quotidiano.'
Mas tu, não. Tu deste, sem pedir de volta. Sem esperar alguma coisa em troca. Porque preferes dar, do que receber. E ainda preferes que eu cuide melhor de mim do que de ti.

Contigo aprendi que a amizade não se procura nem se encontra. Nós sim, somos por ela encontrados. E eu fui encontrado pela tua.
Por ti, descobri que a amizade não acontece. Pratica-se. Com uma capacidade que ou temos ou não queremos.

Sinto a tua amizade, não tanto pelo que me dás, mas pelo que me ensinas de mim. Reparo como falas bem dos teus amigos na sua ausência e sei que o fazes também comigo. A tua amizade existe por aquilo que me deste. Não pelo muito que ainda me podes vir a dar. Ao mesmo tempo fazes-me sentir parte de ti. Como se as nossas maneiras de ser se intersetassem. Como se já antes nos conhecêssemos e pouco precisássemos dizer para nos entendermos.

Sinto que o tempo e distância que nos têm separado não prejudicam a nossa amizade. E isto, porque nós não nos usamos para ocupar os nossos tempos livres. Só para ir ao café ou jantar fora. Por não temos caído nas rotinas que exigem mais um do outro, como que um querer esgotar o que outro tem (não vá a vida acabar amanhã). Ao contrário, nós procuramo-nos quando temos assunto para preencher o nosso tempo. Para entregarmos um ao outro mais um pouco de nós. Para exercer a prática daquilo que nos vai mantendo Amigos.

Hoje apeteceu-me falar contigo...
E dizer-te que me lembrei de ti.

quinta-feira, 12 de março de 2015

A Casa da Peneirada


E chegávamos a casa dos avós na Beira Alta. O carro cansado detinha-se em frente ao portão de madeira pintado de verde.
Entrávamos para o jardim feito de pequenos caminhos entre os canteiros desenhados pelos buxos com aquele cheiro único, ainda hoje, irremediavelmente gravado na minha memória. Um aroma que me acompanhava quando andava no triciclo azul que havia sido do pai e, mais tarde, no verão ou naquelas manhãs de inverno brancas de geada.

Os avós recebiam-nos como que sobreviventes duma longa batalha e com saudades como se fossem de anos.

A avó Têca que sempre nos ensinou como uma notável austeridade podia conviver com um imenso carinho, não escondia a felicidade de nos ver. Eternamente preocupada com a nossa boa saúde e crescimento que resolvia com dietas imensas de delícias inigualáveis. Ao mesmo tempo apontava-nos o dedo decidido e sentenciava 'Estás magro que nem um cão. Tens que comer mais.'

O avô Domingos de fato completo preto, com a correia doirada do relógio pendurada no colete e lunetas adaptadas aos óculos, vivia permanentemente ocupado entre jornais enormes e escritas que levava a cabo sentado na secretária de madeira escura do seu escritório. Nunca percebi bem qual era a sua profissão até que um dia me atrevi e perguntei: 'O avô é engenheiro?', Com um sorriso bem-disposto, respondeu: 'Eu, engenheiro? Eu, quanto muito, sou engenhocas.'

Aprendi mais tarde que fazia peças lindíssimas em madeira com desenhos feitos de encaixes perfeitos. Como aquele pequeno castelo que sempre vi em cima da sua secretária, com ameias e uma torre ao centro na qual, entre paredes, entrava, como luva, um relógio de bolso. Guardava nele, entre cartas, sinetes e pequenas barras de lacre de cor avermelhada.

Também a gaiola dos pássaros numa prateleira na varanda que era réplica da própria casa havia sido construída por aquele meu parente que eu tanto respeitava.
A varanda era aquela divisão da casa típica da Beira Alta, toda ela janelas viradas a sul, onde secava a marmelada num sem número de malgas de barro, tapadas por uma folha de papel vegetal previamente embebida em aguardente. Também lá, se encontravam as melhores seleções de pevides, restos dos melhores melões que havíamos comido e que secavam distribuídas por pedaços de jornais em cima duma cómoda.

Outra das soberbas obras era o Mahjong, com as peças impecavelmente cortadas. Uma metade em madeira escura colada a outra de madeira clara. A avó tinha contribuído com as suas habilidades, pirogravando as cento e quarenta e quatro pecas, entre chinas e bambus, dragões e ventos.

Para além do escritório, o avô tinha uma oficina com todo o tipo de ferramentas. Entre alicates, tornos, formões e martelos, nada faltava para a confeção dos seus tesoiros de madeira.

A diversidade de atividades não se esgotava, contudo, aqui. Na oficina havia também um armário repleto de frascos de vidro como os da farmácia. Uns transparentes outros azuis-escuros e outros ainda castanhos. Cada um com rótulo de papel manuscrito a anunciar os químicos que encerrava. O pai explicou-me que serviam para experiências e aplicações nas várias plantações que havia na quinta.

Mas o instrumento que mais me maravilhava era uma máquina para revelar daguerreótipos, acompanhada das chapas e produtos necessários. A janela daquela divisão tinha mesmo uma pequena portinhola com um vidro encarnado que visava deixar a oficina em modo de câmara escura.

O quarto onde me lembro ter dormido as primeiras vezes naquela casa de sonho, era ainda o dos pais. Ficava no andar mais alto, por cima do escritório e era frequente darmos com passarinhos a esvoaçarem lá dentro, talvez por ter junto às janelas os ramos da maior das árvores do jardim. Por isso chamávamos-lhe o Quatro dos Passarinhos.

A cama onde eu dormia (na altura, ainda de grades) ficava ao canto, do lado direito da de casal, do lado onde dormia a mãe. Aquele quarto tinha, para além da habitual cómoda e guarda-vestidos, um móvel cuja parte superior de mármore tinha um lavatório, ainda que sem água corrente. Para o encher, tínhamos jarros de esmalte trazidos do andar térreo e, para o despejar, retirávamos a tampa, fazendo escorrer a água para um balde que se encontrava no armário existente por baixo.   

'Vamos para a mesa!' chamou a avó.

De verão, as refeições eram servidas na sala de jantar, em vez de na sala de estar onde, de inverno, aproveitávamos o calor da braseira. Era uma sala com painéis de madeira a toda a volta com uma altura média dum homem adulto e com um pequeno rebordo onde se expunham loiças decorativas. Ao canto havia uma lareira que raramente vi em funcionamento.
A mesa, posta com o rigor do quotidiano daquela casa, contava com alguns pormenores engraçados como os descansos onde se apoiavam, do lado direito, as facas e a colher de sopa. Cada um dos comensais tinha também, junto aos copos, uma pequena tijela com água na qual lavava as cerejas (ou outra fruta) à medida do seu apetite.

No dia daquela nossa chegada o almoço era ainda mais elaborado, resultado das orientações rigorosas da avó. A sopa era obrigatória, um prato de peixe e um de carne, seguidos depois dum doce e, finalmente, da fruta.
No fim havia sempre o ritual do café feito em balão. Todos assistíamos maravilhados quando o avô acendia a lamparina colocada por baixo do recipiente inferior fazendo ferver a água que, por sua vez, subia à parte superior onde se encontrava o café moído. Depois bastava esperar que o líquido, já escuro, descesse enquanto a sala era invadida pelo aroma único do café.

Enquanto os mais velhos o terminavam de beber o café, o pai perguntou:

'Quem quer ir a seguir lá abaixo ver a quinta?' criando de imediato uma agitação de felicidade extra nos três irmãos.

sábado, 28 de fevereiro de 2015

Experiências que a civilização apagou


Mais tarde ou mais cedo, irá acontecer.
E eu, como muitos, vou esperando que o dia passe. Que mais um dia passe. Quantos mais? Quanto tempo mais?

Hoje tenho três reuniões que ainda preciso preparar e um almoço que me é importante. Hoje não me dá jeito. Não tenho vagar. Vou ter que deixar para amanhã ou, se calhar, para um outro dia.

Vivemos num termo algures entre o conformados e o enganados. Mas enganados por nós próprios. Por ser mais fácil arranjar falsas explicações que nos convençam estarmos bem, do que nos fazermos melhores pessoas.
Não conheço quem não diga viver na melhor terra, no melhor bairro. Ter o melhor médico (todos eles chefes de serviço no hospital). Os filhos na melhor escola (onde também anda a filha do ministro).

Dizer o contrário seria como que admitir o erro próprio. O ter falhado. E não alimentar a crença naquilo que nos faz felizes. Não poder ser reconhecido pelos outros.

Mas um certo fel me vai invadindo o paladar do espírito. Um estado de angústia crescente que finjo não entender só porque, hoje, não tenho tempo. Ou o tempo que não tenho é inventado para que não tenha que entrar nesta arena e conseguir vencer mais esta fera do momento.

Estas interrupções de emoções e instintos comutadas em exercícios da razão são, a meu ver, contranatura. E por isso as adiamos na esperança vã de que a vida nos resolva as vontades.

No entanto, quanto mais tempo passa mais flacidez é acumulada na nossa mente. E, consequentemente, o inevitável será sem dúvida mais sofrido.

O que fazer então? Que ideia ter quando nem mais um sal se dilui e o nível de saturação parece já ter atingido o seu máximo.
                                                         
Chegámos a um ponto em que urgem pensamentos estranhos. É hora de ideias absurdas. Tanto quanto um ovo convenientemente rachado garante o próprio equilíbrio.

A imitação ou mesmo a adaptação das ideias alheias não bastam nem resultam senão na confirmação do esgotado.
O conceito do reinventar que tanto se vai usando nos dias de hoje, já não tem lugar eficaz. Teremos mesmo que inventar, como que do zero.

De nada serve mudarmos de morada, trabalho ou mesmo de amigos. A solução tem que passar por vivermos de uma outra forma. Mais ainda que olharmos a vida de uma outra perspetiva, temos que a viver duma maneira que ninguém ainda conhece. Ou porque realmente nunca existiu ou porque aqueles que conheceram essa fórmula, já há muito partiram e não deixaram experiências que a civilização apagou.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Nesta data...



São duas e trinta e seis da manhã. Acordei há pouco com uma luzinha que piscava no telemóvel, avisando uma mensagem sua, a lembrar-me o seu aniversário.

Quando acordo assim de noite fico às voltas na cama a tentar voltar a adormecer. E acabo por me levantar e passar pela cozinha em revista ao frigorífico, na esperança dum copo de leite que me sossegue o vazio que sinto no estômago.

Como amanhã não trabalho (quer dizer, hoje) dou um pulo à sala e reparo na sua fotografia a sorrir para mim. E, uma vez que não devo ter oportunidade de me encontrar consigo durante o dia, para lhe dar um beijo de parabéns, aproveito esta insónia para lhe escrever a contar as novidades que já há muito não dou.

É certo que o trabalho não me tem dado grandes tréguas, o que sempre ajuda a esquecer as saudades. Mas também fui aprendendo ao longo deste tempo a lidar com a sua ausência. A aprender a que não me fizesse falta.

É verdade que me recordo, com um sorriso que não consigo disfarçar, das pequenas coisas que nos fazia (a mim e aos manos).

Do beijo de boa noite e do bom dia sussurrado ao ouvido ao acordar-me com uma festa na cabeça. Das delícias que nos preparava. As laranjas de gelatina, aquelas bolinhas de chocolate às quais chamava Eduardos Nascimentos. As pilhas de banana, marmelada e queijo com um palito espetado. As fatias recheadas (não as douradas, recheadas com carne). O leite condensado em caramelo na porta do frigorífico. 

Do que nos ensinava. Os bolos com farinha peneirada. Aquela seringa que criava várias formas de bolachas de manteiga. Os torrões do açúcar amarelo na caixa azul da despensa. As bolachas Taratas compradas na Manutenção Militar. 

Da mascarilha e da capa de Zorro feitas das suas habilidades, à noite, já tarde, cansada, porque era absolutamente urgente que eu as levasse no dia seguinte para a escola.

Das árvores de Natal e do presépio que nos ensinava a fazer juntos. Em família. Das partidas e brincadeiras que nos mostrava. Do humor que moldou em mim.

Com um sorriso que não consigo disfarçar, mas que se transforma em olhos turvos, como se gotas de chuva na janela pela qual olho sem ver lá fora. Enquanto reparo no que hoje sou, fruto do que deixou seu, em mim. Na coragem e na força que teve que ter para conseguir viver amputada dos seus filhos.

A falta que faz já não é a mim. É aos meus filhos. Quando os olho hoje a crescerem sem a mãe deles por perto. Só porque houve um pai que achou que lhes queria dar o melhor.

Eu o pai. Eu o melhor?

Eu a tentar substitui-la, não em mim, mas nos seus netos. Eu a tentar ser a Mãe que me fugiu e que eu ainda não deixei partir. Nem nunca vou deixar.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

A viagem


Acordávamos antes do sol, com uma festa ternurenta na cabeça, acompanhada de um beijo e um 'Bom dia.' cantado baixinho, pela mãe, aos nossos ouvidos.

Os três pulávamos da cama desviando o sono com ânimos que nos sobravam.

O pai num festim de malas e sacos, sentenciava
'Aviem-se! Aviem-se, senão apanhamos muito trânsito.'

Na garagem dormia o automóvel que nos levaria ao nosso destino. Um Saab 96, branco, ainda com motor a dois tempos e acompanhado duma curiosa carripana de marca Goggomobil com a cor da moda de então. Um azul de roupa interior, que harmonizava quase no perfeito com os armários da cozinha. O pai usava-o em dias de trabalho para se deslocar até à estação do Metro mais próxima de casa.

O carro era empurrado para fora da garagem, com manobras de volante, feitas através da janela do lado do condutor, previamente aberta. O motor desligado, evitava a concentração de gases do escape no interior do seu abrigo.

A partida era um momento solene como se da descolagem dum avião se tratasse.
'Fheee, fheee.', fazia o pai num assobio chocho de apenas ar, assinalando manobras complicadas que careciam de precisões milimétricas.

Eram perto de duzentos e sessenta e oito quilómetros de viagem suados, para quem tinha que conduzir por aquelas estradas nacionais da altura, marcadas por algumas práticas bem dignas de filmes do Far West.

De início, cerca de trinta quilómetros de progresso levavam-nos de Lisboa a Vila Franca. Nesta autoestrada, passávamos por baixo duma pequena ponte que prevenia quedas de sacos, transportados através dum sistema de roldanas, entre duas unidades duma fábrica. Esta era para nós uma marca inequívoca (quase) de que nos dirigíamos à Beira Alta.

De uma forma simples, o itinerário resumia-se a: Lisboa, Leiria, Coimbra e, por fim, Santa Comba Dão. O pai fazia contudo e, quase sempre, variações que eu imaginava servirem para despistar perigosos agentes secretos nossos inimigos.

Ao fim de sensivelmente uma hora, passávamos pela Batalha cujo mosteiro nos alertava pouco faltar para a nossa primeira paragem. Aproveitávamos Leiria para atestar a viatura duma mistura de gasolina e óleo e também as sentinas do café central no cumprimento das nossas fisiológicas carências. No café, os pais compravam Brisas do Lis para oferecemos aos avós. As Brisas eram doces regionais em caixas de dúzia, brancas e com uma fotografia do castelo da cidade à noite.

A seguir a Coimbra havia dois caminhos possíveis: ou atravessando a verdejante serra do Buçaco carregada de frondosas árvores ou fazendo gingar o carro pelas estreitas estradas que passavam na Foz do Dão e serpenteavam pelos montes como víboras. Por aqui, o veneno escolhia sempre a mana (coitada) e obrigava a paragens para práticas regurgitantes.

A chegada começava a ser anunciada com algum tempo de antecedência, recuperando assim em nós a esperança daquela viagem, afinal, poder vir a chegar ao fim. Primeiro quando passávamos a Mealhada, depois o Luso, Mortágua e,...

Finalmente! Santa Comba!

Deixando o cemitério do nosso lado esquerdo, víamos, ao fundo da descida, a igreja matriz, depois o tribunal e o entroncamento mais central da vila a que todos chamavam balcão

(Balcão? Agora, a esta distância afigura-se-me um termo curioso. Só se pela proximidade da Caixa Geral!).

O balcão ramificava-se em cinco artérias e era o sítio mais movimentado do lugar onde se concentravam vários habitantes, em conversas sem urgências e acompanhadas por cigarros fumados pelos homens. Poucas eram as mulheres que se arriscavam a imitá-los, não fosse a vila falar.
À nossa passagem, saudações eram trocadas e, que a nossa chegada iria de imediato ser anunciada, não tínhamos a menor dúvida.

Por fim, a seguir à Casa do Povo, avistávamos a Peneirada, a casa dos avós, na qual viria a viver, ao longo de anos, experiências impossíveis de esquecer.