sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Frugalidade


Não foi mau o início. Nada mau. Comecei a trabalhar com dezassete anos num restaurante onde ganhava uns trocos que me permitiam sair com amigos, sem sobrecarregar em pedidos extras de semanadas o meu pai. Aos vinte e um, tinha já o meu próprio restaurante que, não obstante a dedicação necessária, premiava-me com rendimentos que nunca mais consegui igualar (mesmo sem atualizações do custo de vida). Como se de uma boa situação se tratasse e, porque nem só dos bons rendimentos o homem vive, decidi retomar os estudos, entretanto interrompidos por urgências da tri-paternidade ocorrida. Dediquei-me a realidades de complexos números e lineares estruturas algébricas que pude aplicar a probabilidades, otimizações e computações. Ao fim de alguns anos, vesti fato e gravata e lá iniciei a minha nova atividade profissional como consultor. A vida continuava a prometer em virtude da aproximação do novo milénio e do crescimento da economia. Sem excessos, consegui comprar a minha primeira casa, andava de Mercedes e fazia viagens de trabalho por essa Europa fora.

Eis que, por altura dos primeiros anos do novo milénio, comecei a sentir alguns sinais de desaceleração das facilidades da vida que, até então, só tinha concebido como crescentes. Na minha axiomática, os pais, por mais anos de serviço e sobretudo por mais conhecimento e experiências acumulados, só poderiam ter uma situação financeira mais confortável que os filhos.
Tentei encontrar falhas no reconhecimento do meu valor e apontei dedos aos que considerei responsáveis. Decidi agir encontrando e executando soluções. ‘Nestas coisas, o remédio é sempre o mesmo.’, pensei, ‘Ou se reduzem as despesas ou se aumentam as receitas.’ Ou, claro está, ambas. Como era de esperar, achei mais interessante pôr em prática a segunda parte e lá fui eu vender as minhas mais-valias para outras autarquias. Distraídos da tormenta que se aproximava ou desejosos de se prepararem para a enfrentar, lá me reconheceram o valor, e eu, recuperava assim o equilíbrio das contas.

Não demoraram, contudo, a aparecerem novas necessidades de ginásticas financeiras. Embora já tivesse iniciado o refrear de certos gastos, dediquei-me a explorar melhores soluções.
Comecei pelo carro: do Mercedes passei a um Panda. Lembro olhares de amigos divertidos com o novo brinquedo chamando-lhe «carro lunar». 'Eh pá, tem radio e tudo.' Afinal, o carro parecia continuar a ser o mais importante da vida das pessoas. Passei a escolher os restaurantes onde almoçava pela coluna da direita na ementa. Reduzi o número de jantares fora com a família. Cansado com o tempo que gastava no trânsito da autoestrada, comprei uma mota em segunda mão que me reduziu de imediato a duração de viagens, portagens (os itinerários alternativos não eram um problema para o novo veículo) e estacionamento.
Deixei ginásios e dediquei-me à corrida junto ao mar. Passei a tomar os meus duches diários com água fria, qualquer que fosse a estação do ano. O aumento da pressão e necessidades de respirar diminuíram drasticamente a duração daquele ato (para alguns, tresloucado) de higiene. Passei a usar barba aparada o que tem a grande vantagem de não estar fora da moda, reduzindo consideravelmente a conta do supermercado por razões de lâminas.

Um novo ajuste aos transportes levou-me a adquirir uma bicicleta que fiz questão ser de fabrico nacional e modelo clássico (o tradicional parecia-me condizer melhor com o fato e gravata). Durante as minhas deslocações entre casa e a estação dos comboios, notei expressões ambíguas nas caras das pessoas que me viam passar. Um misto de gozo e respeito. Qualquer coisa entre: ‘Olha-me este de fato a andar de bicicleta’ e ‘Que giro. Devia haver mais gente a fazer isto.’ Algumas das vantagens desta minha opção, são evidentes: não gasto gasolina, estacionamento, manutenção de carro. Outras não são de discernimento imediato: demoro menos tempo a chegar à estação do que os carros que têm que enfrentar semáforos e trânsito resultante das movimentações escolares, não tenho que dar voltas à procura de estacionamento e paro a escassos metros da rampa de acesso à estação. Outras ainda são indiretas: faço exercício diariamente sem gastar mensalidades de ginásios e minimizo os efeitos dos anos no acesso a cuidados de saúde. Foi com grande contentamento que, passados alguns meses, verifiquei o aumento do trânsito sobre duas rodas (gosto de pensar que posso ter contribuído com migalhas de exemplos).
Também Aritméticas simples do quotidiano me levaram à produção caseira de pão e iogurtes, processos que não me tiram mais que alguns minutos (os dois). Com a poupança de um mês consegui pagar o investimento na máquina de fazer o pão.
Fiz parte dos pioneiros, ao levar almoço e lanches para o escritório, nas famosas lancheiras que hoje se vêm mão-sim, mão-não nos transportes públicos.

Entrementes lá fui contagiando a família com preocupações e práticas inerentes ao acima exposto (algumas difíceis de pegar pois não percebo como, ainda hoje, não consegui convencer ninguém lá em casa a tomar o banho frio). Estas tentativas de contágio passavam amiúde por conversas, mais ou menos filosóficas, com o meu filho mais velho. O Francisco tinha-se formado em engenharia do ambiente, e interessava-se cada vez mais pelo tema da permacultura. Tema este o levou à (ainda decorrente) aventura da viagem por esse mundo fora e que já o fez passar pela Índia, Nepal, Austrália, Nova Zelândia, Indonésia, Filipinas e, neste momento, Califórnia (tenho muitas saudades dele). O seu principal objetivo é o de adquirir o conhecimento em cursos da área e travar contacto direto em quintas onde a permacultura é uma realidade.

Durante estas conversas, fui aclarando as minhas ideias e percebi que tudo o que eu tinha pensado e feito estava muito mais relacionado com aquela consciência de vida, do que com simples ideias e engenhos que visam a redução de custos. Trata-se de mudar hábitos de vida com vantagens correlacionadas. Pessoalmente não vejo a permacultura como uma solução que possa substituir os nossos hábitos do dia para a noite, mas sinto ser uma fortíssima fonte de inspiração para mudanças que todos, mais tarde ou mais cedo, teremos que fazer.

Acima refiro algumas das medidas que tomei, mas muitas outras, pratico no dia-a-dia. Julgo, porém, que o que mais interessa é termos presente princípios que nos orientem e como são exemplos os seguintes:

  • reduzir os consumos ao essencial (e.g. água, luz, gás, gasolina);
  • produzir alguma coisa para nosso consumo (e.g. manjericão, tomate cherry);
  • evitar ao máximo a venda ou compra de serviços;
  • comprar produtos o menos transformados possível;
  • se possível, não comprar, mas sim trocar;
  • não se alimentar para além das quantidades necessárias;
  • não comprar, caso não seja necessário;
  • se for mesmo necessário, fazê-lo o mais tarde possível;
  • comprar, sempre que possível, o que é produzido mais perto de sua casa;
  • adquirir sempre produtos ou serviços comercializados  mais perto da sua morada


Parece-me evidente termos dois caminhos possíveis para as nossas existências: ou continuamos a forçar o que sempre fizemos, seguindo o filão até que este se esgote, ou ajustamos a nossa forma de viver recriando hábitos o menos artificiais possível (numa primeira fase), para recriar depois costumes o mais possível naturais. Não será fácil. Um pouco como deixar de fumar: é difícil, mas faz nos sentir cada vez melhor. E como correr: dores de pernas e desculpas inventadas que temos que vencer apenas dentro da nossa cabeça.

No seguinte endereço poderão encontrar uma crescente lista de ideias: Frugalmente falando 



sábado, 25 de outubro de 2014

Casas comigo?



Naquele 18 de julho, como que se os planetas estivessem no alinhamento certo, lá nos encontrámos, como toda a gente, por um acaso.
Curiosos um do outro passámos a noite a conversar, com urgências de nos conhecermos melhor.

Também como para os outros, lá vieram as translações da vida que fazem mudar as horas das relações, mas nós estávamos apaixonados e quisemos continuar juntos.

'Casas comigo?', era a pergunta que mais sonhava fazer-te.

Casámos num outubro em que várias pessoas juraram ter visto passar Noé e sua embarcação. Mas o sol brilhou no dia da nossa festa, no primeiro dos mais felizes dias das nossas vidas.

Olhando para ti hoje, não sinto que nos tenhamos casado e pronto, objetivo atingido! Sinto que a nossa vida continua viva. Todos os dias construímos mais um pouco de nós. Não simplesmente porque sim, mas porque, cansada ou não, tu tomas conta de mim e de nós.
O maior (enorme) valor que tu tens, não é o que eras quando te conheci, mas sim a capacidade que tens de ir buscar a força para conseguires lidar com uma série de azares e injustiças que tens tido na vida. E, o que é engraçado, é que queres essa força, não para ti, mas sim para tratares dos nossos filhos, de mim e de nós.
Cada vez mais, sinto ser muito importante a escolha das pessoas que queremos perto de nós. Elas podem fazer-nos muito mal ou muito bem. E tu fazes de mim o melhor que eu já consegui ser.

Suspeito que não haja folhas suficientes para te dizer o que adoro em ti. Por isso hoje apenas te digo que...:

Adoro as nossas conversas.

Adoro ver-te sorrir e ouvir-te gargalhar.

Adoro a tua companhia mesmo no silêncio dos nossos livros e pensamentos. Quando uma cúmplice troca de olhares ou uma suave festa (um toque apenas) nos relembra que estamos juntos.

Adoro quando ouvimos a nossa música.

Adoro sentir a tua companhia mesmo quando saíste ou eu ainda não cheguei.

Adoro o teu ronronar quando, eu, a meio da noite e por segundos, acordo, dou-te um suave beijo no pescoço e sussurro que te amo.

Adoro a tua companhia durante a correria da semana e no descanso do fim de semana.

Adoro aquilo que és para mim e o que me deixas ser para ti.

Sinto-me feliz!

Sinto-me feliz por reconhecer que o que sentes por mim. Nunca o tinha experimentado antes. Muito provavelmente porque o que tu sentes não é o resultado daquilo que eu, um dia, inventei que sentiam por mim.
Sinto-me feliz quando basta que os nossos olhares se encontrem para dizermos ou percebermos o que nos vai no pensamento. Quando em conjunto refletimos e decidimos o melhor para os nossos filhos.

As diferenças que temos (todos as têm) não nos são adversas pois sabemo-las encaixar. E isto faz o nosso casamento ainda mais forte.
Aliás, encaixar, deveria ser a palavra substituta para casamento. Gosto de pensar que o nosso não é como um simples puzzle de quarenta e nove peças mas sim mais como uma espécie de hipercubo de Rubik.

Quando sofro porque tu sofres ou rio porque tu ris, fundimo-nos mais um no outro. E quanto mais nos fundimos mais nos sentimos.

Tu pensas e ages como se o casamento não fosse para ti, mas sim para mim e, consequentemente, para nós.

Luísa, este é o sonho com o qual quero continuar a crescer o resto das nossas vidas.
Por isto tudo quero renovar hoje, perante ti e todos que lerem estas minhas palavras, a minha decisão de querer ficar contigo até… SEMPRE.

domingo, 19 de outubro de 2014

Receita infalível para o sucesso

Aquando da minha candidatura à faculdade tive que preencher uns quantos impressos. Um deles perguntava-me qual a razão de me propor ao curso por mim escolhido. A minha resposta foi tão simples quanto sincera: ‘Porque acho que posso e quero ajudar pessoas e empresas a fazerem melhor os seus trabalhos.’
Mal sabia eu que um dia viria a ser tratado pelo pomposo
(na altura)
nome de consultor.
Este era um termo que me parecia ser condensador daquilo que eu realmente queria ser. Alguém que, por ter desenvolvido o conhecimento numa determinada área, poderia aconselhar outros nas suas atividades cujo objeto principal não permitia o investimento na aquisição mais aprofundada de competências adjacentes.
Ao longo dos tempos do exercício da minha profissão, muito aprendi. Aprendi que alguns dos princípios e valores que me tinham sido passados desde sempre seriam prejudiciais ao sucesso numa carreira de consultor.   
Pareceu-me então oportuno aqui deixar alguns exemplos que possam vir a ajudar aqueles que desejem abraçar tão distinta filosofia de vida.
Algumas regras sociais antiquadas como:
«Os mais novos levantam-se para cumprimentar os mais velhos»
ou
«Os homens levantam-se para cumprimentar as senhoras»,
enquanto que
«As senhoras esperam sentadas o cumprimento dos homens»,
devem ser excluídas do dia-a-dia do verdadeiro consultor.
Lembre-se sempre que algumas mulheres vêm estes tipos de gestos como sinal de as quererem rebaixar, muito embora, quando se lembram que, para além de mulheres também gostam de ser mimadas, apreciem estes gestos de atenção.
Talvez um pouco como o decidir que a existência de um talher de peixe é uma perfeita aberração, mas nunca esquecer, quando se vai jantar ao restaurante japonês da moda, de utilizar os famosos pauzinhos, abraçando dessa forma a cultura nipónica.
Caso tenha aspirações a chefe, nunca se rebaixe (muitas vezes) a dizer bom dia, pedir desculpas ou dizer por favor. Estas são posturas que enfraquecem a sua imagem junto dos clientes e equipas. E, como é sabido, mais vale parecer-se inteligente e ficar calado do que abrir a boca e desfazer uma boa imagem (tanto como ser burro e calado ficar em vez de abrir a boca e confirmá-lo).
Em aparente contradição ao exposto acima, numa reunião, nunca se esqueça de dizer umas frases em linguagem corporativa, mesmo que não tenha opinião formada sobre o assunto em debate.
Use sempre vestuário formal (fato, gravata na hipótese masculina) se possível de boa marca que sempre cai melhor e dá um ar mais distinto. Isto é fundamental para intimidar as pessoas e atrasar o mais possível eventuais sinais de pessoa normal.
Seja sempre cordial com os subalternos, mas trate-os com firmeza (afinal eles são seus novos-escravos da atual sociedade).
É fundamental ser atencioso e interessado quando conhecer novas pessoas, mas não perca tempo com elas, caso verifique não serem importantes para os seus objetivos.
Opine muito sobre o que aconteceu no passado, referindo o que foram boas decisões (e.g. abolição da escravatura ou a não discriminação de homossexuais), mas evite dar opiniões sobre o presente ou futuro (é que pode falhar e depois fica-lhe mal).
Por ter sido eu, a maior parte das vezes natural e espontâneo, fui contemplado com soslaios de colegas incomodados. Mas felizmente não deve ter sido por razões de trabalho, senão teriam, com certeza, sido abordadas profissionalmente.  
Tive e tenho ainda a oportunidade de reparar nestes e muitos outros comportamentos, pese embora o facto de me ter que remir e confessar ter falhado redondamente no cumprimento daquela que achava poder ter sido a profissão mais bonita que um dia escolhi.

sábado, 11 de outubro de 2014

Felizmente hoje sinto-me triste




Felizmente hoje é um daqueles dias em que me sinto triste.
Talvez porque chegou o fim do mês de férias e a minha filha se vai embora. Talvez porque a agitação diminuiu dando-me tempo para pensar, para sentir.
Aquela música que pus a tocar, sinto-a. Sinto-a muito mais que nos outros dias. Sinto as colcheias, as sincopas, aquela terceira menor. Sinto a dor ou a alegria de quem escreveu a letra. Sinto arrepios e estremeções. Lágrimas e força.

Felizmente hoje é um daqueles dias em que me sinto triste.
Procuro, no fundo, memórias de me sentir bem. Penso em fumar um cigarro para voltar a sentir aquele bem-estar que um dia senti quando fumei. Não sei se o senti pelo cigarro ou se simplesmente o cigarro estava lá no dia em que me senti bem.
Quando sentimos saudades de alguém ou de alguma coisa, convém percebermos bem de quem ou do quê, pois corremos o risco de querer reviver algo que já não existe.

Felizmente hoje é um daqueles dias em que me sinto triste.
Porque nem a felicidade nem a tristeza são constantes e a partir de hoje irá ser sempre melhor. Porque consigo preparar melhor a fase seguinte, como imagino no surf, para apanhar a onda seguinte, temos que começar cá em baixo. E tal como o mar a vida imita uma sinusoidal cuja amplitude indica ser mais ou menos excitante. Não gostaria de chegar ao fim e, em jeito de balanço, pensar: 'Ah, a minha vida tem sido muito estável. Quase zero na escala de Beaufort.’

Felizmente hoje é um daqueles dias em que me sinto triste.
Porque vale a pena lembramo-nos das coisas olhando-as de outras formas. Como as recordações que tenho do espaço onde brincava na minha escola primária e do qual guardo na memória diferentes perspetivas.
Porque nos ajuda a valorizar aquilo que temos e que o hábito tende a fazer-nos esquecer.

Felizmente hoje é um daqueles dias em que me sinto triste.
Felizmente porque assim vivo mais do que nos dias preenchidos de afazeres do quotidiano que só me consomem o tempo da vida.

domingo, 5 de outubro de 2014

Ainda há tempo infinito


Desde sempre que as pessoas, ao tentarem adivinhar-me a idade, me fazem mais novo, em média, dois anos.
Não sei se por ser o último de três irmãos, se por ter sido o mais jovem do grupo de amigos das férias. No trabalho tem ajudado o facto de privar com colegas que rondam as idades dos meus filhos e que me acharam apenas um pouco mais velho que eles.
Hoje acredito que se deva ao facto de ter quase tantos cabelos quantos os que tinha aos quinze e, no meio de tantos, se tanto, três veladas cãs. E talvez o meu tipo de pele que na adolescência me povoou a cara com os mais variados tipos de erupções, me compense agora com a suavização do efeito das rugas.

Talvez por isto, só agora que tenho quase cinquenta e dois, comece a sentir o efeito dos cinquenta.

Como é sabido há dois motivos para levarmos um automóvel à revisão: ou pelos quilómetros atingidos ou pelo número de meses decorridos. Também para os homens existem duas indiscutíveis razões que os levam a visitar o médico sem aparente razão: ou porque passaram os cinquenta ou porque foram avós. No meu caso ambas se verificaram e lá fui eu.

‘Pois faz muito bem em fazer exercício físico’, disse-me o doutor. ‘Atitude inteligente ter deixado os cigarros’, acrescentou. ‘Está muito bem para a sua idade’.
E lá se seguiu a previsível explicação de que a partir dos cinquenta, é de prudência elementar fazer uma série de exames que mitiguem os riscos de doenças graves.
(doença grave, é a forma humanamente correta que hoje em dia se usa para designar casos de cancro). 
Por muito positivo que me tenha habituado a ser, não foi preciso mais que um par de horas para que me tivesse ocorrido a hipótese: ‘E se estas coisas que só acontecem a parentes afastados que nunca conhecemos e aos vizinhos dos colegas do escritório, me surpreendessem também a mim?’  

Quando tinhas os meus seis anos, questionava-me perplexo sobre quantos dias demoraria até que acordasse e onde estaria depois do dia em que morresse.
Tirando esta fase da minha vida, o tema da morte não me voltou a apoquentar e hoje julgo conviver bem com a ideia (provavelmente passei a achar-me eterno).
Contudo, ao pensar na hipótese de tal me vir a acontecer nos próximos seis meses, ou no próximo ano, fiquei preocupado. Como iria fazer e sobretudo dizer uma série de coisas que fui sempre adiando para momentos de maior vagar e inspiração?
Como iria eu dizer aos meus filhos, à minha mulher e aos meus amigos tudo aquilo que não tive ainda oportunidade de dizer?

‘Escrevendo!’, pensei.

Mas para quê escrever? Para que viva enquanto houver alguém que tenha ouvido falar de mim? Não condiz com aquela que julgo ser a minha natureza. Quem sou eu para achar que posso deixar alguma coisa aos que ficam e virão? Se não temos o direito de julgar os outros, porque poderemos achar que temos o direito de os ensinar? Para ajudar à evolução da humanidade? Evolução que só tem destruído o mundo como um cancro destrói as células dum corpo?

Pensei que não seria para os outros que escreveria, mas sim para mim como forma de expurgo das minhas toxinas mentais.
Mas se escrever para os outros e não só para mim, serei sem dúvida, mais genuíno e, assim, quem me ler descobrirá mais de mim. Lembrei-me até de propor a um terapeuta analisar-me à distância, iniciando assim uma nova era nas técnicas da especialidade Freudiana.

Por outro lado, quando não dizemos às pessoas o que pensamos, elas são livres de imaginar o que quiserem de nós. E pior, podem julgar que nós pensamos delas o que elas acham de pior em si.

Está decidido! Vou escrever!


Será que ainda há tempo? Gosto de pensar que, ainda que pouco, o tempo é sempre infinito.