quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Um Bom Natal


No mês de dezembro os dias iam decrescendo em aberturas de janelas de cartão que nos ofereciam pequenos chocolates.
O pai trazia o pinheiro que era colocado em frente às escadas que serviam a sala, junto das portas de vidro que davam acesso ao quintal da casa dos Olivais. Acompanhávamos a mãe à arrecadação do andar de cima onde descobríamos caixas de sapatos das quais surgiam fitas, bolas, pássaros de vidro e as luzes coloridas de que tanto gostávamos.

O presépio era feito numa espécie de prateleira, junto à lareira, destinada a arrumar a lenha. Sobre um papel pardo, coberto de musgo, colocávamos a cabana de madeira e cortiça e depois as várias figuras. Um palito era ajustado nas mãos de José em substituição do cajado sempre desaparecido em arrumações do ano anterior.

Os pais mandavam-nos para a cama com explicações de tenras idades e necessidades de dormir. Com promessas de que, na manhã seguinte, teríamos os nossos sapatos (entretanto deixados junto da lareira), recheados de presentes.

Lá adormecíamos resignados e com a imaginação a fervilhar de adivinhas e desejos.
Já longe iam os sonhos quando, um pouco após das doze badaladas, os pais nos iam acordar com notícias de visitas do Pai Natal. Descíamos à sala em pijama e pantufas, quais Anita e Pedro do livro da mana.
Recordo ter desembrulhado uma caixa enorme e de ver surgir a pista de carros de corrida que foi, durante anos, o meu brinquedo preferido. E ainda, dentro do meu sapato, um pacote de Sugus de morango (os meus preferidos).

Há fotografias que a nossa memória tira para só mais tarde as contemplarmos. Uma que guardo com especial ternura é aquela em que vejo a felicidade brilhar nos olhos dos pais, só por terem conseguido preparar aquele momento mágico para nós.

Este foi um exemplo que, mais tarde, quis repetir com os meus filhos. E, quando lá cheguei, fi-lo com todo o carinho que me tinha sido ensinado. Os calendários do advento, o pinheiro com as luzes a brilhar, o presépio, os doces. Tudo o que só nesta época surgia para a marcar e que pudesse criar aquele feitiço que, a mim, me tinha feito feliz, queria imitar. A maior felicidade que sempre consegui sentir foi aquela que resultou de ver os meus filhos felizes.     

Aquela exaltação da contagem decrescente de dias até à consoada pertencia agora aos mais novos.  
Recordo os tempos desta transição. Quando descobrimos que, afinal, o Pai Natal não existia. Que eram os nossos pais que nos compravam os presentes. Do desejo do brinquedo à desilusão do tradicional par de peúgas. Da preferência pelo dinheiro para que pudesse ir eu comprar o que mais gostava. Do jeito que um cheque dava para ajudar a pagar as ofertas aos outros ou o seguro do carro que teima em aparecer sempre no fim do ano.
A consciência da quadra que de religiosa já pouco tem, para além duma ou outra Missa do Galo.

O sentimento do ter que ser. De parecer mal não ter um presente para oferecer. 'É uma coisa sem importância. Só uma pequena lembrança. Espero que goste.' e o presenteado a agradecer ‘Que giro. Era mesmo isto que eu queria… O que é?’
O resumir-se a transações comerciais de última hora. Entradas e saídas de caixa num final de saldo negativo.


Para que seja um bom Natal, hoje só me interessa poder estar numa noite de paz com aqueles de quem gosto. De conversar com os meus irmãos, de ver os filhos a conviverem com os primos, em noitadas que duram até ao nosso pequeno-almoço. De ver a geração dos filhos a fazer magia aos netos. E de poder passar só mais um Natal com o meu pai.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Não foi nada Sr. Engenheiro


De há uns tempos para cá, tem-me apetecido falar com o pai.

Recordo momentos da minha infância com sorrisos, nos lábios e no olhar. Lembro-me das férias em casa dos avós na Beira Alta e na FNAT em Albufeira, dos primeiros vinte e cinco tostões que ganhei por ter ajudado o pai a cortar a grama do quintal.

Lembro-me que, quando algum de nós (dos três manos) era surpreendido por uma febre intestinal (vulgo nome da altura para gastroenterite), esperávamos a Tia Helena, amiga, já família e nossa pediatra. Quase só tardava momentos de mudas de sapatos de salto por outros mais rasos, para conduzir e que a acompanhavam sempre no seu Taunus azul. Depois de nos observar entre palpações abdominais e peculiares gargalhares dos quais jamais ouvi, qualquer tipo de imitação (ainda que ténue), sentenciava dias de cama e rigorosas dietas de canjas de galinha (primeiro só caldo). E, claro está, a completa abolição da papa Cérélac preparada com leite e açúcar derivado de se tratar de argamassa suficiente para danificar os nossos jovens aparelhos digestivos.

Estes dias em que éramos cativos na nossa própria cama (recordo até os pijamas às riscas que não me deixam mentir) tornavam-se de alguma forma especiais, quase de festa, pois o pai decretava ser maleita suficiente para que fosse colocada a televisão no quarto do enfermo de serviço. Depois do jantar, lá se reunia toda a família para assistir à série ou filme em cartaz TV. Desta forma o doente era como que a estrela do dia.

Lembro-me com cristalina clareza, quando um dia assistíamos a uma daquelas cenas mais íntimas na qual um qualquer Humphrey sussurrava a uma qualquer Lauren, palavras não acompanhadas de legendas. E eu perguntei ao pai ‘Porque é que não traduziram? Era conversa de chacha?’ o que produziu de imediato uma inesperada, mas bem disposta risota no responsável pela minha existência.

Certo dia, foi também aquela argamassa, a responsável pela apendicite aguda da mana (assim o disse a nossa familiar médica) e que a levou a sessões especiais de televisão, em quarto quase de princesa, no hospital da Cruz Vermelha.

Vejo aqueles tempos em que andávamos de bicicleta na rua e o pai nos alertava, 'Não passem junto dos portões, porque se sai algum miúdo a correr, não têm tempo de o evitar'. Talvez tão simples cuidado tenha contribuído para nunca tivesse tido qualquer acidente quando, já em adulto, me deslocava no trânsito na minha moto 650cc.

Recordo uma imensa variedade de experiências que fez questão que vivêssemos. Com apenas sete anos ensinou-me a guiar o Saab, de motor desligado em duzentos metros dum declive mínimo que a nossa rua (impasse) era. Saía da garagem já ao volante e, com a força dum ligeiro empurrão, tinha como missão estacionar o carro um pouco mais à frente junto ao passeio e, sobretudo, bem paralelo a este.

Lembro das tardes de fim de semana em que fazíamos tiro ao alvo com uma pressão de ar e da recompensa do 'ping' quando acertávamos na mouche.
Do volteio, da ginástica de obstáculos e das coboiadas nas quais o instrutor nos fazia empurrar os cavalos para as alagadas fundações da atual Faculdade de Ciências onde mais tarde estudei.
Do pai me mostrar o seu florete e o gilet do colégio e de me ter comprado um livro que explicava, com imagens, a fundos e guardas. Não terá sido, com certeza, por coincidência que eu, aos quarenta, resolvi escolher a esgrima como prática desportiva.

Certo dia o pai foi assistir na escola primária a uma demonstração de habilidades várias executadas pelos alunos da minha classe e quase que paralisava de horror ao ver-me fazer uma divisão de forma aparentemente errada. Só recuperou quando a professora explicou estar tudo certo, pois estava eu a trabalhar em base seis e não na esperada base dez. Calculo que ter aprendido esta matemática (dita moderna) tenha sido razão bastante para nada me ter custado, mais tarde na faculdade, perceber contas nos sistemas binário, octal e hexadecimal.

Lembro-me do dia em que fomos assistir à sessão dupla no cinema Restelo com o tão desejado Flipper  como segundo filme (o mais importante). 

Nunca falámos muito e, no entanto, tinha tanto para lhe perguntar. Sem me aperceber queria pergunta-lhe como se crescia.

Recordo exemplos de serões de trabalho, entre plantas espalhadas no estirador, contas na máquina calculadora mecânica com aquelas manivelas e o 'pling' a anunciar o fim da sucessão das somas (fingindo multiplicações). Mas também do viver sem se esquecer de si, facto que nos levava a ficar amiúde, em casa ao sábado à noite, acompanhados pela Mimi, uma senhora já de alguma idade (talvez uns longínquos quarenta anos).

A Mimi gostava muito de nós e ocultava com carinho alguma asneira menor que nos tivesse como protagonistas. Ainda hoje recordamos a três e com alegria, o dia em que o pai se ataviava e perfumava no andar de cima, com o afinco que aquele dia da semana merecia. Estávamos nós a ver televisão quando as já compridas pernas do mano foram contagiadas pelas convulsões do seu riso e, sem querer, empurraram a mesa onde se encontrava a televisão, fazendo com que esta caísse, com ruído, no chão. Ato continuo ouvimos do andar de cima a frase que já se adivinhava: ‘Que barulho foi esse?’, pergunta prontamente respondida pela Mimi:

‘Não foi nada Sr. Engenheiro. Foi só a televisão que caiu.’

Ainda hoje me causa alguma estranheza não ter, nesse dia, havido um pé de vento valente.         

De muito mais vivências me lembro. Entre simples e mais elaboradas, entre agradáveis e outras nem tanto, mas que (entendo hoje) tiveram que acontecer no momento certo para que o resultado fosse o que hoje sou.

Falámos tão pouco e queria ter falado mais. Mas o certo é que as formas de estar e de agir foram ficando como que coladas a mim. Sei hoje que muito mais do dizer as coisas para ensinar os filhos a crescer, há que as fazer para que eles as sintam naturais e que passem a fazer parte de si.

Falámos tão pouco. E no entanto queria que tivéssemos falado muito mais.
Eu que nunca fui dessas mariquices tal como aqueles tempos nos ensinaram. Nada de colos, abraços e pieguices. Acho até que passei com uma certa distinção neste exame que dura há cerca de cinquenta anos.

E hoje sinto vontade de deitar tudo a perder. E que venha de lá a zorra. Não me importo de chumbar. Porque me apetece conversar tudo o que não falámos.

Há já uns anos que as quartas-feiras são reservadas para almoçarmos juntos. Senti primeiro uma espécie de obrigação de lhe fazer companhia que logo se transformou em vontade de ficar mais tempo, de não ter que ir trabalhar, só para ficarmos a conversar tudo aquilo que não dissemos e que ainda temos tempo de pôr em dia. De irmos passear, caçar, viajar. Para eu lhe possa dizer o quanto gosto de si. O quanto lhe agradeço ter-me feito ser o que hoje sou.

Sempre que por alguma razão não conseguirmos almoçar juntos, vou fazer como se estivéssemos e continuar a nossa conversa que nunca havemos de acabar. E, se por perto calharem filhos e netos, sou bem capaz de lhes explicar o seu ponto de vista sobre a problemática do melhor posicionamento da mira e do teodolito portátil, nos pinhais da Beira Alta.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Há anos que não abraço o meu filho


Foi há dois anos, em dezembro que combinámos um almoço de família, lá em casa. Entre pais, filhos e já respetivos destes, somávamos nove a mesa.

A desculpa para querermos estar simplesmente juntos, dessa vez era de peso: o Francisco (o mais velho dos descendentes) ia partir daí a dois dias numa viagem pelo mundo. Depois de alguns anos de escoteiro e de cerca de seis no Técnico, onde fez engenharia do ambiente, decidiu mergulhar numa aventura na qual não só se propunha desenvolver os conhecimentos em permacultura, mas, sobretudo, encontrar-se a si próprio.

O viajante ia com rota mais ou menos definida: Índia, Nepal, Austrália, Nova Zelândia, Indonésia, Filipinas, Califórnia. Hoje amanheceu em Guadalajara no México. Depois, acho que nem ele ainda sabe o destino.

Nos dias que correm, fazer viagens de férias, não é razão para grandes cuidados, mas quando vemos um filho partir para uma proeza destas, não ficamos propriamente tranquilos. Sempre tentei não ser um pai muito cacarejante, mas confesso que neste caso, vários são os sentimentos que por mim têm passado: saudades, medo de não o voltar a ver…

Mas há que pensar nele e não em mim.

O Francisco teve a engraçada ideia de levar para esta nossa reunião alguns pertences seus que distribuiu por cada um de nós, pedindo que tomássemos conta do seu tesouro e que o utilizássemos quando pensássemos nele. A mim calhou-me uma tigela tibetana e, várias vezes, dei comigo a produzir com ela sons, certo que o meu filho, lá misturado com os antípodas, sentia as ondas das minhas saudades.

É curioso como nos vamos tentando sossegar ao longo do crescimento dos nossos filhos 'Agora já e mais tranquilo porque já começou a andar. ' ou 'Já fico mais descansado, porque já vai sozinho para a escola.' e mais tarde ' Como já tirou a carta, empresto-lhe o carro e já não precisa de voltar para casa de transportes.' Passados vinte e oito anos achamos que vai ser uma vida despreocupada, pois já são adultos e já sabem tomar conta deles. Mas que imenso engano!

Este ano em que fez trinta, achei que escrever-lhe uma carta seria o melhor abraço que lhe poderia dar à distância física a que nos encontramos.

E assim orou a dita missiva:

«Meu querido e excelente Filho Francisco,

(é favor por a tocar esta música que há muitos anos deixaste que fosse gravada na tua memória)

1984, junho 23, cerca das 14:35 encontrava-me eu e, principalmente a Mãe, numa pequena sala de operações duma clínica em Lisboa. Ela deitada e eu, do seu lado esquerdo, observava tudo e tentava em vão minimizar o sofrimento por que passava (ainda hoje estou para saber onde foram parar os botões da minha camisa, arrancados a cada contração cada vez mais forte). A dada altura, no meio daquela espécie de transe em que me sentia, o médico sugeriu-me melhor posição e explicou:

'Repare, já se vê a cabeça!'.

Em frações de tempo que não consegui, nem consigo precisar terem sido horas, minutos ou segundos apareceste tu pela primeira vez na minha vida (e principalmente na tua). Entre pequenino e todo ensanguentado, reparei na tua cabeça e pensei:

'Ai coitadinho que tem a cabeça em bico como o avô'.

As enfermeiras levaram-te e quando te voltei a ver junto a um calorífero, já estavas todo limpinho, a cabeça curiosamente já redondinha e vestido com roupas uns dez tamanhos acima, apesar de escolhidas entre as mais pequenas.

Nunca mais me esquecerei deste momento em que a minha vida mudou para sempre!

Durante os trinta anos que se seguiram até hoje, muito aconteceu e sinto: alegria, preocupação, dedicação, felicidade e sobretudo muito Amor.

Decidiste partir à procura da tua vida e de ti. Hoje mais do que nunca, há que saber reinventar a vida e tu és dos poucos que estás a saber fazê-lo. Nunca na vida hei de ter as experiências pelas quais estás a passar. Sinto a tua falta, mas (tu sabes) fico feliz por ti.

Como dizia um tal de Laurence Sterne «Nós gostamos das pessoas menos pelo bem que elas nos fizeram que pelo bem que lhes fizemos a elas». No caso das relações pais-filhos, sempre achei que esta esta ideia deveria servir (sempre) como uma luva. Os filhos não são nossa propriedade, mas sim nossa responsabilidade.

Vejo hoje a tua sobrinha ‘bi-dente’ a gatinhar e vejo-te a ti há trinta anos. Vejo o ar ternurento e a abundante baba do teu mano e vejo-me a mim desde há três décadas. Esta é uma inexplicável experiência em que obviamente te ganho (toma!).

Diz-me que estás feliz e fazes-me continuar feliz. Por aqui, parece-me que começou a chover, pois já senti algumas gotas a escorrer, devagar, pela minha cara, como que lágrimas (se calhar lágrimas).

Muitos e muito Parabéns pelas tuas três décadas e faz-nos o favor de passares um O DIA super feliz! E, já agora, o resto da tua vida.

Saudades e um enorme abraço,
Pai»

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Ainda não consigo chorar


Hoje o trabalho, lá no escritório, correu bem. Escrevi um texto em resposta a uma reclamação que me deixou extenuada, mas que no fim me rendeu o elogio da diretora, ‘Muito bem Manuela. Está redigido de forma impecável.’

Desliguei o computador, vesti o casaco e peguei na mala. Passei pela sala do micro-ondas onde almoço todos os dias com as minhas colegas e apanhei a lancheira onde levei a refeição (estavam ótimas as favas, António).
Ao sair para a rua fui saudada por uma aragem morna que me redobrou o contento da sexta-feira e pensei ‘Se o tempo estiver assim amanhã podemos ir dar um mergulho à praia. Não temos os miúdos este fim de semana e o António adora praia.’   

Dirigi-me à estação dos comboios e (que sorte) não espero mais que dois minutos. Assim chego a tempo de ir ao ginásio com a minha amiga Mafalda. Pomos a conversa em dia e sempre lavamos a vista com aquele instrutor giro que nos dá as aulas de Core

Já no comboio distraio-me a reparar nos outros viajantes, cheios de personalidade. Auriculares pendurados nos ouvidos e os seus telefones móveis, acessórios obrigatórios para quem viaja de comboio e não quer ser olhado como um estranho. Alegra-me sentir o nível de auto confiança, profissional e pessoal, das passageiras que conversam mesmo atrás de mim, ‘E eu tive que dizer a um engenheiro, para deixar de continuar a enviar mais “é-mails”, pois não adiantava nada.’, dizia a mais faladora, ‘Porque se há coisa que eu não sou é estúpida.’. Sempre me intrigou a razão deste tipo de observações à própria pessoa.    

Ao chegar a casa, regressada do ginásio, sinto frio. Reparo que deixaste a janela da sala aberta quando já esperava que tivesses acendido a lareira para acompanhar o nosso jantar de boas vindas a estes dois dias de descanso. Só nós dois, a namorarmos um pouco.

Julgo ouvir-te no duche, mas antes passo pela cozinha e retiro da lancheira a caixa com o resto da quiche do almoço que não terminei (já me saíram melhores estas tartes). Guardei-a no frigorífico e pus a caixa para lavar.

Ao chegar ao nosso quarto reparo que o barulho da água a correr vem do andar de cima e percebo que afinal ainda não chegaste. Tento lembrar-me se tinhas avisado de reunião tardia ou algum jantar da empresa.  

Vou preparando os nossos petiscos. Aqueço a sopa, ponho a mesa e escolho uma garrafa dum daqueles tintos que sempre gostámos.

E sento-me a pensar em nós. Como nos conhecemos, o dia do nosso casamento. Por vezes, quando os nossos filhos conseguem vagar para vir cá almoçar connosco, erguemos o copo e fazemos-te um brinde, como sempre nos habituaste e fizeste ao retrato da tua mãe. E contamos anedotas que nos ensinaste para que possamos rir contigo. 

O tempo passa e tu não chegas. Aguardo um telefonema teu que não toca. Agora me lembro que hoje não me respondeste à mensagem que te envio desde sempre à hora do almoço.

Abro a garrafa escolhida e bebo um pouco do vinho que sempre ajuda a desfazer este nó que sinto na garganta.

António, se não te importas, vou continuar a por dois pratos na mesa. É que sabes, custa-me estar para aqui sozinha. E ainda não consigo chorar. Não consigo porque ainda não me habituei à ideia de teres morrido sem esperares por mim.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Cultura ou erudição


Há dias fui assistir à defesa da tese de doutoramento do meu amigo João. Três horas e meia que se revelaram de uma dureza incrível, quase cruel. O João parecia tenso mas lá se ia aguentando estoicamente, suportando a sua Cruz. O problema foi quando eu resolvi realizar o esforço de tentar entender e acompanhar todas aquelas argumentações que me deixaram numa espécie de transe, zonzo, como que embriagado. Já devia saber que não nos devemos esforçar para além dos nossos limites, sob pena de perigos, como bilhas de gás a provocarem hérnias irreversíveis.

Apesar das dificuldades, lá consegui reconhecer no júri uma concentração de erudição que jamais tinha sentido. Jurados todos eles togas e penteados de génios. Cabeleiras que imagino serem a continuação das mentes irrequietas e revoltas que por baixo daquelas habitam, sem se adivinharem grandes esperanças de um dia virem a ser domadas. Temi pelo normal corte de cabelo do João. Imaginei que detetassem nele a falta do perfil adequado para membro da academia.

A única senhora, de entre os cinco Doutores, pareceu-me ter a exclusividade de um penteado não saído diretamente de uma noite de confrontos com a almofada. Causou-me até uma certa ternura uma vez que me trouxe recordações da minha bisavó Joana que nunca conheci para além dos daguerreótipos a sépia que preenchiam paredes e mesas na casa de família da Beira Alta. Talvez só a cor creme dos sapatos de verniz não batesse certo com o que sempre imaginei ser o calçado daquela minha antepassada.

Em cada intervenção dos vários elementos do júri, pareceu-me estarem a corrigir exercícios, aplicando como que com uma grelha de papel transparente a axiomática que de cor sabiam. Como que a puxar de togas e penteados (noutras instituições dir-se-ia galões). De uma forma de quem chega e diz: ‘Repare, estimado candidato, que antes de si, sou eu muito mais importante por gama ter o sinal negativo.’ (não devem ser muitas as oportunidades de fazerem marcar a sua notoriedade).

Sempre me pareceu que os eruditos passavam uma vida inteira a estudar os outros até à exaustão, sem terem tempo para ideias próprias. Reagindo apenas com críticas (positivas ou negativas), o que resulta numa certa dificuldade na análise de novas ideias.
Entretanto, o João mantinha a sua postura adequada à situação, portador dum sorriso amável (pareceu-me vislumbrar uma técnica de sorrir à guisa da Gioconda, uma vez que os olhos não pareciam sorrir o mesmo que a boca), sempre melhor daqueles que o interpelavam, porque a matéria que expôs e defendeu foi a duma disciplina por ele inventada e que ainda poucos percebem.

Deixei entrementes o meu pensamento vaguear por um certo dia em que me perguntaram o que achava mais importante:

Cultura ou erudição?

A pergunta deixou-me cristalizado por uns instantes até me decidir pela opção da cultura.
Recordo o meu professor de história do décimo ano a dizer: ‘Culto é aquele que consegue olhar em volta e perceber o que o rodeia.’
Desde então sempre olhei para as coisas tentando alcançar como poderia desembaraçar-me, se um dia ficasse sozinho numa ilha qual Robinson Crusoe. Creio mesmo que este ensinamento (aparentemente exíguo) me tem guiado durante toda a minha existência.
No exame oral ao qual fui submetido aquando da admissão à faculdade, o professor, ao identificar a minha escolha pela Matemática Aplicada à Computação, sentenciou, ‘Mais um que só vai entender de uma só coisa na vida.’ ao que eu contrapus, ‘Não concordo. Para poder servir os meus futuros clientes, vou ter que estudar e compreender cada uma das suas atividades.’

Sempre fiquei inquieto quando lia ou ouvia um termo ou conceito desconhecido. Não descanso enquanto não fico por dentro do assunto recorrendo logo que possível a dicionários, enciclopédias, Google. Assim como sinto um tremendo contento, quando vejo referências a pequenas coisas como, por exemplo, o facto de em todas a línguas que conheço, a palavra ‘noite’ ser resultado da letra ‘N’ (representante dum número infinito numa série) seguido pelo número oito que, na horizontal, é o símbolo de infinito. Tudo isto porque os antigos temiam que, quando o sol se punha, a escuridão da noite pudesse não ter fim.
Este é o tipo de conhecimento que parece não nos trazer nada de útil, mas que me dá um prazer imenso por sentir que compreendo as coisas.     

Mas retomando o João, sempre o vi na localização da virtude: entre culto e erudito.

Sem o gosto pela erudição, não teria tido a paixão e empenho que o caracterizaram durante o desenvolvimento desta sua tese.
Por outro lado, sempre descobri o João sôfrego de conhecimento de coisas aparentemente supérfluas, como é o caso da identificação de constelações e planetas.
Não descansa enquanto não põe em prática as teorias geradas ou estudadas.

Mas existem outros condimentos essenciais para uma verdadeira inteligência que fazem do João uma pessoa digna de distinção e louvor.
Tem uma humildade (convenientemente gerida) que só não vê quem não está habituado a querer perceber os outros.
Detém um humor que só me faz olhar para os britânicos (distinguidos nesta especialidade) como meros meninos de coro. 
Desconfia que pode haver pessoas mais inteligentes, humildes ou com mais refinado humor que ele.
E tenho ainda fortes suspeitas que não deixa que outros pensem por ele.

Não é o simples amigo da rede social. E não é pela sua inteligência que o considero como Amigo. Isso faria de todos os inteligentes meus amigos, o que não é verdade. O facto de o olhar como tal, não foi uma escolha minha, mas sim resultado da sua maneira de ser e de agir.

O João é o exemplo do que os colegas da sua empresa (e muitos outros) um dia queriam vir a ser.

                                                                                                                                
Se o apanhar a jeito hoje, sou bem capaz de lhe dar os parabéns. Não por ser Doutor, não por fazer simplesmente quarenta e nove anos, mas sim por tudo aquilo que tem sido e conseguido, nestas (quase) cinco décadas.


Hoje, se me perguntassem outra vez, não teria qualquer dúvida…

Entre culto e erudito preferia ser João.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Não voltarei a adormecer sem dizer boa noite!


Aquele dia era passado contigo. Já há muito estava combinado. Vieste-nos buscar, a mim e aos manos, e esperavas no teu carro um pouco mais abaixo da nossa rua, como que escondida (se calhar escondida) atrás dos pinheiros redondos que tinham pouco mais que a minha altura.

Disseram-me que te tinhas portado mal o que para mim foi um alívio, pois consegui uma razão de suportar melhor a tua ausência. Apontaram-te o dedo e sentias-te frágil com uma culpa que não era a tua. Infração decidida por procuradores e juízes que provavelmente não tinham tido infância (coitados), pois de outra forma teriam zelado pela nossa estabilidade. E ao te acusarem, nós, mesmo não estando por dentro dos assuntos, repetimos o gesto dando assim força aos acusadores e consumindo ainda mais a tua energia.

Lembro-me dos primeiros fins-de-semana em que dormimos em tua casa e que eu acordava a chorar baixinho. E apesar de não fazer muito barulho, tu ouvias-me e levavas-me para a tua cama onde eu voltava a adormecer com um sorriso desenhado na cara, porque afinal tu gostavas de mim. Sentia-me quentinha e protegida, enquanto tu me olhavas cheia de ternura e feliz, por momentos. Por conseguires ter-me perto, ainda que por uma fração demasiadamente pequena das nossas vidas.

Tínhamos quartos que arranjaste o melhor que pudeste para nos sentirmos bem e em casa. Compraste um cão bebé que fez as nossas delícias. Davas jantares com amigos que animavam a casa em festas que nos faziam sentir felizes. Mostraste-nos como apreciar as coisas boas da vida. Ensinaste-nos a cozinhar para sabermos saborear os pratos e para nos enchermos de orgulho quando os convidados gabavam o que tínhamos feito. Contavas anedotas que ainda hoje repito aos meus amigos. Fazias partidas que só contagiavam boa disposição. Levaste-nos a conhecer restaurantes (ai aquele The Great American Disaster) com decorações espantosas e música que nos faziam vibrar de alegria. E também onde alguns rapazes (lindos de morrer) trabalhavam. Consegui até ficar apaixonada por um deles a eternidade de um verão.

Pedi-te que voltasses para nós ou nós para ti. Acho que pedi. Não sei se só com o olhar.

Mas um dia, a mana mais velha encontrou uma lâmina de barbear e roupa de homem no teu quarto. Tinhas um namorado que não era o pai e senti uma espécie de traição. Ciúmes, seguramente.

Quando as senhoras das togas e becas te tiraram de nós, só tive uma opção: criar resistências para que me fosses indiferente. Para deixar de sentir aquela dor enorme que parecia fazer-me saltar do peito o coração. Houve uma noite em casa do pai, quando já estava deitada que, em silêncio, sequei até à última lágrima todo o sentimento que tinha por ti.

Continuávamos a ir, de quinze em quinze dias, passar o fim-de-semana contigo por razões da sentença e também para que o pai pudesse ter algum tempo para si. Para namorar, por exemplo.
Mas cada vez mais, sentia que andar de um lado para o outro, não me trazia sossego e só aumentava a minha instabilidade. Precisava de um sítio para crescer. Por outro lado, custava-me dizer-te que não queria ir ter contigo (o que queria era ir viver contigo), mas não conseguia pedir o que quer que fosse ao pai. Não podia ter que escolher entre as duas pessoas de quem gosto mais.

Inventei, portanto, desculpas e razões para me convencer que o melhor era fazer a minha vida em torno do pai (ou melhor: em torno da casa do pai).

Eu sei que te preocupas connosco e só nos queres ajudar. Que já nem queres a tua parte.
Mas pára! PÁRA!
Porque eu não preciso, não quero, porque já sou crescida e sei bem tomar conta de mim.
Tu não queres o meu bem (o dos manos talvez). Só finges querer, mas é em ti que pensas.
Deixa-me. Deixa- me ir. Não quero saber de famílias. Nunca me hei-de casar, de ter filhos. E quando os tiver tudo irá correr bem. Sabes porquê? Por que nunca farei o que tu fizeste. Farei como tenho aprendido que se deve fazer.

E assim aprendi a viver como se não existisses, como se tivesses morrido (pensava eu...).

Um dia ligaram-me do hospital. A enfermeira até foi simpática ao telefone e depois quando cheguei e me levou para o pé de ti.
Tinhas pedido a presença dos teus filhos e só a mim encontraram. Descobri o teu olhar perdido e desesperado. Irradiavas uma dor que senti entrar por mim adentro. Pediste-me para te levar para casa e eu não consegui satisfazer o teu pedido. Nem o teu último pedido.

Nesse dia decidi nunca mais voltar a fazer as pazes com Deus.

Como me ensinou um amigo meu, existe uma forma de viajarmos ao passado para voltarmos a fazer as coisas de outra maneira. É viajando na experiência de outros que já passaram pelo mesmo caminho. Vemos como fizeram, o que obtiveram como resultado e voltamos ao nosso passado para fazermos o nosso futuro correr melhor. 

E uma coisa já mudei:

Não voltarei a adormecer sem dizer boa noite!

Neste momento queria tudo aquilo que deixei fugir e que me faz falta.
Queria ter tempo para ganhar coragem e conseguir dizer à minha mãe o muito que gosto dela.


Boa noite Mãe.
.....


Gosto muito, muito de ti.

sábado, 15 de novembro de 2014

Há que preparar viagens

 

Há alguns dias fui ao hospital fazer exames. Como é habitual tirei a senha ‘A’ e esperei o sinal sonoro que nos faz reparar, num ecrã, qual o número chamado. Tenho o costume de aproveitar os momentos ditos mortos para fazer alguma coisa. Uma das minhas atividades mais comuns quando, por exemplo, viajo num comboio ou espero numa sala feita exatamente para isso (esperar), é ler. E já que nestas ocasiões a delonga é quase sempre inevitável, aproveito e puxo do livro do momento.
Infelizmente a minha dificuldade crónica de concentração, adjuvada pelos tais sinais sonoros ‘Pling’ que nos obrigam a olhar o monitor, fazem-me concluir que a sala está cheia e faltam ainda muitos ‘Plings’ até que chegue a minha vez. Quebrada a atenção, guardo então a literatura e dedico-me à segunda prática plausível nestas situações: observar as pessoas que me rodeiam.

E reparo que, para além de um ou outro caso que a natureza ao acaso escolheu, a maior parte da população da sala é composta por casais cuja idade já vai avançada. Como um dia ouvi dum velho amigo, ‘Qualquer que seja a idade que temos, velhos são aqueles que têm mais dez anos que nós.’ Pares que me fazem imaginar que o pensamento da senhora rondará qualquer coisa como, ‘Que chatice esta demora quando ainda tenho o pó para limpar e o almoço para fazer. Não podias ter escolhido outro dia para adoecer.’ Ou o do marido ‘Logo hoje que é o dia do almoço do clube lá do bairro e que tinha jurado desforrar-me na sueca daqueles velhotes que me ganharam a última vez. De certeza que inventaste a maleita só para me impedires de ir’
(E eu que também lá estava, serei acaso ou velho).

Logo penso na sorte que têm de poderem esperar, um ao lado do outro, de já não estarem sozinhos, só um deles. 
Distancio a reflexão e vejo como é o nosso caminho até ao fim da vida. Aguardando mais uns anos, uns meses, dias… Tentando enganar a vida com ciências que apenas nos fazem durar, não viver.
Olho a natureza e penso que outros animais não cientes (claro), se obrigam a resistir. Tento lembrar-me daquele episódio na televisão sobre as praias onde baleias vão morrer.
Contaram-me em tempos que os cervos, quando chegam perto do fim, sobem à montanha para se lá irem finar.
Penso frugalmente num fim para mim que não sobrecarregue os que ainda viverão. E imagino uma montanha para mim. Uma casa de madeira perto dos cervos. Uma viagem num barco à vela até que as ondas empurrem os restos de um naufrágio e de mim para junto de baleias.

Penso em doar o meu corpo para que jovens imberbes (elas felizmente) possam partilhar bocados do que um dia fui e dedicarem-se aos cortes, mais ou menos precisos, da investigação anatómica. Qualquer coisa de útil para alguém que, já agora, venha a ser proveitosa para os outros.
Para fazerem durar ainda mais?

O que mais me preocupa é saber a linha que separa a consciência fria do que acima disse, da incapacidade desesperada de não conseguir deixar de resistir a durar. Para poder decidir o soltar de amarras ou o subir à montanha. É que, como me ensinaram, há que preparar as viagens.

Mas por agora, mal vejo a hora de chegar o fim (só de semana), para proceder a saudáveis transfusões de taninos de origens aragonesas e outras, acompanhadas por favas de Arraiolos. E, felizmente, também pela minha mulher (um dia será velha ao meu lado) que quase me bate quando lhe falo em adriças ou casas de madeira.  

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Vou ser Pai


Certo dia, até então igual a todos os outros, encontrei um colega no corredor do escritório da empresa. Trocámos cumprimentos e frases circunstanciais até à famosa 'Então? Novidades?', que lhe lancei.

'Vou ser pai!' disse-me. Todo ele dentes e luz no olhar. 'Tu que já tens três filhos diz-me lá como é ser pai.'

À velocidade da luz, a minha memória recuou ao momento em que fiz, a mim próprio, a mesma pergunta. Não era assunto que se pensasse do dia para a noite, mas, passados alguns dias, ao achar que não conseguia condensar melhor ideia, resolvi escrevê-la:

'Que azar nunca ter tido a sorte de saber o que agora vou enfrentar.'

A resposta que dei ao meu colega tinha já, na altura, cerca de vinte anos: 'Ser pai é uma maravilha que, só se consegue perceber depois de o ser.' A história repetiu-se e, até hoje, todos os recém pais, confirmaram assim ser.

Mas ser-se pai não é um momento de novidade, transmitida pela enfermeira de serviço na maternidade e pronto. Assim como que à guisa de quem adquiriu um novo brinquedo.
Nem sequer é, só o colocar da mão na testa da futura mamã, derivado de enjoos noturnos ou mesmo ir em romarias às sessões da tarde das ecografias. Estes momentos são apenas o início de todo o resto da nossa vida.

Ser-se pai é muito mais do que o ter sido. Lembro-me do primeiro dia em que pensei que o meu maior medo era (e continua ser) falhar enquanto pai. Faltar naquele momento em que era preciso e não estava lá, ou porque não reparei, ou porque vi mas não agi (é tão fácil acontecerem estas coisas).
Ser-se pai não é dar banho e dar de jantar aos filhos, vesti-los bonitos para simplesmente os exibir qual troféu aos espetadores. Não é levá-los às escola para serem doutores e, no fim, aprenderem apenas a tomar conta de nós. Os filhos não são nossa propriedade, mas sim nossa responsabilidade.

Não é dar gadgets e dizer: ‘Agora deixa o pai ler o jornal, sim?’
Não é pagar explicações, perdendo a oportunidade de transmitir hábitos de trabalho e, consequentemente, a possibilidade de ensinar responsabilidade.
Não é deixar pensar que a vida nos dá as coisas sem que para isso tenhamos que lutar. Não é mentir, escondendo-lhes que a vida também é feita de frustrações com as quais precisamos de saber lidar, para também nos sabermos levantar.
Ser-se pai, é ensinar a voar, por muito medo que tenhamos de ver os nossos filhos cair.

Não consigo imaginar como se pode ser pai, sem se ficar despedaçado quando vemos uma nossa filha partir (mesmo que para perto). Ou pior, quando a vemos ao nosso lado, mas sabemos que escolheu (ou alguém por ela) ficar longe de nós. Acho que ainda assim, um pai deve teimar em esperar.
Quando chega a notícia da doença que uma filha tem, não consigo conceber outra coisa que não seja dor.

É demasiado fácil apontar o dedo àquilo que sabemos ser mal, só porque tivemos a sorte de ter tido alguém que nos ensinou. Muito mais difícil é olharmos e conseguirmos ver. E alcançarmos sozinhos o que nunca nos mostraram.
Sei que houve momentos em que falhei. Mas considero também que sempre tentei não cair na arrogância de pensar que tudo sabia.
Sinto que uma das melhores formas que temos de mimar os nossos filhos, é conseguirmos dizer, na melhor altura possível, o que deles pensamos. A carta seguinte, escrevi-a à minha filha no seu vigésimo sexto aniversário. Porque as finanças não vão famosas, foi o melhor que lhe consegui dar.

«Minha querida e excelente Filha Margarida,

Foi num sábado de julho, cerca das 16:20 que, no hospital, a pediatra de serviço me disse: ‘Parabéns, a sua filha é tão bonita. Vou buscá-la…’. Vi-te pela primeira vez nas nossas vidas, mas a médica tinha-se enganado. Não eras simplesmente bonita… Eras a bebé mais linda que alguma vez tinha visto.

Tens agora (27,28…) 26 anos e até hoje, muito aconteceu e o que sinto é: alegria, preocupação, dedicação, felicidade e sobretudo muito Amor.

Tu és a responsabilidade em pessoa. Tens (alguns diriam a teimosia, embora eu diga) a determinação necessária para conseguires aquilo que queres e sobretudo aquilo que precisas na tua vida.
Preferes «escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,… A ir por aí...» (engraçado como ainda hoje gosta de ler o Cântico negro)

Acho que tentas remediar os desequilíbrios da vida e por isso queres e gostas de tratar de quem amas. Ou daqueles que queres que te amem, para depois os poder amar.
Fá-lo porque precisas que gostem de ti. Todos nós precisamos que gostem de nós, mas nem todos o sabemos. Ou queremos que o saibam de nós. Só porque o teu altruísmo diz que deves tratar deles.

Penso, contudo que, o teu sentido de responsabilidade te deveria incluir nessa lista de pessoas que queres amar. Talvez mesmo em primeiro lugar (pelo menos algumas vezes).
É que a primeira pessoa que precisas que goste de ti, és tu.
Os outros depois irão gostar de ti (sem perceberem bem porquê). Um pouco como quando há um rapaz que gosta de ti, de repente à tua volta todos te acham graça e todos querem gostar mais de ti que o vizinho do lado.    

Gostava de experimentar um dia (só por um dia) ser um dos teus filhos. Tenho a certeza que não pode haver melhor forma de se sentir avalanches de amor a caírem sobre nós.

Muitos e muitos Parabéns pelos (27,25…) 26 anos e faz-nos o favor de passares um O DIA super feliz! E, já agora, o resto da tua vida.

Não te esqueças que em primeiro lugar tens que gostar de ti. Pelo menos o menos o que eu muito gosto de ti.

Beijos enormes…

Pai»

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Frugalidade


Não foi mau o início. Nada mau. Comecei a trabalhar com dezassete anos num restaurante onde ganhava uns trocos que me permitiam sair com amigos, sem sobrecarregar em pedidos extras de semanadas o meu pai. Aos vinte e um, tinha já o meu próprio restaurante que, não obstante a dedicação necessária, premiava-me com rendimentos que nunca mais consegui igualar (mesmo sem atualizações do custo de vida). Como se de uma boa situação se tratasse e, porque nem só dos bons rendimentos o homem vive, decidi retomar os estudos, entretanto interrompidos por urgências da tri-paternidade ocorrida. Dediquei-me a realidades de complexos números e lineares estruturas algébricas que pude aplicar a probabilidades, otimizações e computações. Ao fim de alguns anos, vesti fato e gravata e lá iniciei a minha nova atividade profissional como consultor. A vida continuava a prometer em virtude da aproximação do novo milénio e do crescimento da economia. Sem excessos, consegui comprar a minha primeira casa, andava de Mercedes e fazia viagens de trabalho por essa Europa fora.

Eis que, por altura dos primeiros anos do novo milénio, comecei a sentir alguns sinais de desaceleração das facilidades da vida que, até então, só tinha concebido como crescentes. Na minha axiomática, os pais, por mais anos de serviço e sobretudo por mais conhecimento e experiências acumulados, só poderiam ter uma situação financeira mais confortável que os filhos.
Tentei encontrar falhas no reconhecimento do meu valor e apontei dedos aos que considerei responsáveis. Decidi agir encontrando e executando soluções. ‘Nestas coisas, o remédio é sempre o mesmo.’, pensei, ‘Ou se reduzem as despesas ou se aumentam as receitas.’ Ou, claro está, ambas. Como era de esperar, achei mais interessante pôr em prática a segunda parte e lá fui eu vender as minhas mais-valias para outras autarquias. Distraídos da tormenta que se aproximava ou desejosos de se prepararem para a enfrentar, lá me reconheceram o valor, e eu, recuperava assim o equilíbrio das contas.

Não demoraram, contudo, a aparecerem novas necessidades de ginásticas financeiras. Embora já tivesse iniciado o refrear de certos gastos, dediquei-me a explorar melhores soluções.
Comecei pelo carro: do Mercedes passei a um Panda. Lembro olhares de amigos divertidos com o novo brinquedo chamando-lhe «carro lunar». 'Eh pá, tem radio e tudo.' Afinal, o carro parecia continuar a ser o mais importante da vida das pessoas. Passei a escolher os restaurantes onde almoçava pela coluna da direita na ementa. Reduzi o número de jantares fora com a família. Cansado com o tempo que gastava no trânsito da autoestrada, comprei uma mota em segunda mão que me reduziu de imediato a duração de viagens, portagens (os itinerários alternativos não eram um problema para o novo veículo) e estacionamento.
Deixei ginásios e dediquei-me à corrida junto ao mar. Passei a tomar os meus duches diários com água fria, qualquer que fosse a estação do ano. O aumento da pressão e necessidades de respirar diminuíram drasticamente a duração daquele ato (para alguns, tresloucado) de higiene. Passei a usar barba aparada o que tem a grande vantagem de não estar fora da moda, reduzindo consideravelmente a conta do supermercado por razões de lâminas.

Um novo ajuste aos transportes levou-me a adquirir uma bicicleta que fiz questão ser de fabrico nacional e modelo clássico (o tradicional parecia-me condizer melhor com o fato e gravata). Durante as minhas deslocações entre casa e a estação dos comboios, notei expressões ambíguas nas caras das pessoas que me viam passar. Um misto de gozo e respeito. Qualquer coisa entre: ‘Olha-me este de fato a andar de bicicleta’ e ‘Que giro. Devia haver mais gente a fazer isto.’ Algumas das vantagens desta minha opção, são evidentes: não gasto gasolina, estacionamento, manutenção de carro. Outras não são de discernimento imediato: demoro menos tempo a chegar à estação do que os carros que têm que enfrentar semáforos e trânsito resultante das movimentações escolares, não tenho que dar voltas à procura de estacionamento e paro a escassos metros da rampa de acesso à estação. Outras ainda são indiretas: faço exercício diariamente sem gastar mensalidades de ginásios e minimizo os efeitos dos anos no acesso a cuidados de saúde. Foi com grande contentamento que, passados alguns meses, verifiquei o aumento do trânsito sobre duas rodas (gosto de pensar que posso ter contribuído com migalhas de exemplos).
Também Aritméticas simples do quotidiano me levaram à produção caseira de pão e iogurtes, processos que não me tiram mais que alguns minutos (os dois). Com a poupança de um mês consegui pagar o investimento na máquina de fazer o pão.
Fiz parte dos pioneiros, ao levar almoço e lanches para o escritório, nas famosas lancheiras que hoje se vêm mão-sim, mão-não nos transportes públicos.

Entrementes lá fui contagiando a família com preocupações e práticas inerentes ao acima exposto (algumas difíceis de pegar pois não percebo como, ainda hoje, não consegui convencer ninguém lá em casa a tomar o banho frio). Estas tentativas de contágio passavam amiúde por conversas, mais ou menos filosóficas, com o meu filho mais velho. O Francisco tinha-se formado em engenharia do ambiente, e interessava-se cada vez mais pelo tema da permacultura. Tema este o levou à (ainda decorrente) aventura da viagem por esse mundo fora e que já o fez passar pela Índia, Nepal, Austrália, Nova Zelândia, Indonésia, Filipinas e, neste momento, Califórnia (tenho muitas saudades dele). O seu principal objetivo é o de adquirir o conhecimento em cursos da área e travar contacto direto em quintas onde a permacultura é uma realidade.

Durante estas conversas, fui aclarando as minhas ideias e percebi que tudo o que eu tinha pensado e feito estava muito mais relacionado com aquela consciência de vida, do que com simples ideias e engenhos que visam a redução de custos. Trata-se de mudar hábitos de vida com vantagens correlacionadas. Pessoalmente não vejo a permacultura como uma solução que possa substituir os nossos hábitos do dia para a noite, mas sinto ser uma fortíssima fonte de inspiração para mudanças que todos, mais tarde ou mais cedo, teremos que fazer.

Acima refiro algumas das medidas que tomei, mas muitas outras, pratico no dia-a-dia. Julgo, porém, que o que mais interessa é termos presente princípios que nos orientem e como são exemplos os seguintes:

  • reduzir os consumos ao essencial (e.g. água, luz, gás, gasolina);
  • produzir alguma coisa para nosso consumo (e.g. manjericão, tomate cherry);
  • evitar ao máximo a venda ou compra de serviços;
  • comprar produtos o menos transformados possível;
  • se possível, não comprar, mas sim trocar;
  • não se alimentar para além das quantidades necessárias;
  • não comprar, caso não seja necessário;
  • se for mesmo necessário, fazê-lo o mais tarde possível;
  • comprar, sempre que possível, o que é produzido mais perto de sua casa;
  • adquirir sempre produtos ou serviços comercializados  mais perto da sua morada


Parece-me evidente termos dois caminhos possíveis para as nossas existências: ou continuamos a forçar o que sempre fizemos, seguindo o filão até que este se esgote, ou ajustamos a nossa forma de viver recriando hábitos o menos artificiais possível (numa primeira fase), para recriar depois costumes o mais possível naturais. Não será fácil. Um pouco como deixar de fumar: é difícil, mas faz nos sentir cada vez melhor. E como correr: dores de pernas e desculpas inventadas que temos que vencer apenas dentro da nossa cabeça.

No seguinte endereço poderão encontrar uma crescente lista de ideias: Frugalmente falando 



sábado, 25 de outubro de 2014

Casas comigo?



Naquele 18 de julho, como que se os planetas estivessem no alinhamento certo, lá nos encontrámos, como toda a gente, por um acaso.
Curiosos um do outro passámos a noite a conversar, com urgências de nos conhecermos melhor.

Também como para os outros, lá vieram as translações da vida que fazem mudar as horas das relações, mas nós estávamos apaixonados e quisemos continuar juntos.

'Casas comigo?', era a pergunta que mais sonhava fazer-te.

Casámos num outubro em que várias pessoas juraram ter visto passar Noé e sua embarcação. Mas o sol brilhou no dia da nossa festa, no primeiro dos mais felizes dias das nossas vidas.

Olhando para ti hoje, não sinto que nos tenhamos casado e pronto, objetivo atingido! Sinto que a nossa vida continua viva. Todos os dias construímos mais um pouco de nós. Não simplesmente porque sim, mas porque, cansada ou não, tu tomas conta de mim e de nós.
O maior (enorme) valor que tu tens, não é o que eras quando te conheci, mas sim a capacidade que tens de ir buscar a força para conseguires lidar com uma série de azares e injustiças que tens tido na vida. E, o que é engraçado, é que queres essa força, não para ti, mas sim para tratares dos nossos filhos, de mim e de nós.
Cada vez mais, sinto ser muito importante a escolha das pessoas que queremos perto de nós. Elas podem fazer-nos muito mal ou muito bem. E tu fazes de mim o melhor que eu já consegui ser.

Suspeito que não haja folhas suficientes para te dizer o que adoro em ti. Por isso hoje apenas te digo que...:

Adoro as nossas conversas.

Adoro ver-te sorrir e ouvir-te gargalhar.

Adoro a tua companhia mesmo no silêncio dos nossos livros e pensamentos. Quando uma cúmplice troca de olhares ou uma suave festa (um toque apenas) nos relembra que estamos juntos.

Adoro quando ouvimos a nossa música.

Adoro sentir a tua companhia mesmo quando saíste ou eu ainda não cheguei.

Adoro o teu ronronar quando, eu, a meio da noite e por segundos, acordo, dou-te um suave beijo no pescoço e sussurro que te amo.

Adoro a tua companhia durante a correria da semana e no descanso do fim de semana.

Adoro aquilo que és para mim e o que me deixas ser para ti.

Sinto-me feliz!

Sinto-me feliz por reconhecer que o que sentes por mim. Nunca o tinha experimentado antes. Muito provavelmente porque o que tu sentes não é o resultado daquilo que eu, um dia, inventei que sentiam por mim.
Sinto-me feliz quando basta que os nossos olhares se encontrem para dizermos ou percebermos o que nos vai no pensamento. Quando em conjunto refletimos e decidimos o melhor para os nossos filhos.

As diferenças que temos (todos as têm) não nos são adversas pois sabemo-las encaixar. E isto faz o nosso casamento ainda mais forte.
Aliás, encaixar, deveria ser a palavra substituta para casamento. Gosto de pensar que o nosso não é como um simples puzzle de quarenta e nove peças mas sim mais como uma espécie de hipercubo de Rubik.

Quando sofro porque tu sofres ou rio porque tu ris, fundimo-nos mais um no outro. E quanto mais nos fundimos mais nos sentimos.

Tu pensas e ages como se o casamento não fosse para ti, mas sim para mim e, consequentemente, para nós.

Luísa, este é o sonho com o qual quero continuar a crescer o resto das nossas vidas.
Por isto tudo quero renovar hoje, perante ti e todos que lerem estas minhas palavras, a minha decisão de querer ficar contigo até… SEMPRE.

domingo, 19 de outubro de 2014

Receita infalível para o sucesso

Aquando da minha candidatura à faculdade tive que preencher uns quantos impressos. Um deles perguntava-me qual a razão de me propor ao curso por mim escolhido. A minha resposta foi tão simples quanto sincera: ‘Porque acho que posso e quero ajudar pessoas e empresas a fazerem melhor os seus trabalhos.’
Mal sabia eu que um dia viria a ser tratado pelo pomposo
(na altura)
nome de consultor.
Este era um termo que me parecia ser condensador daquilo que eu realmente queria ser. Alguém que, por ter desenvolvido o conhecimento numa determinada área, poderia aconselhar outros nas suas atividades cujo objeto principal não permitia o investimento na aquisição mais aprofundada de competências adjacentes.
Ao longo dos tempos do exercício da minha profissão, muito aprendi. Aprendi que alguns dos princípios e valores que me tinham sido passados desde sempre seriam prejudiciais ao sucesso numa carreira de consultor.   
Pareceu-me então oportuno aqui deixar alguns exemplos que possam vir a ajudar aqueles que desejem abraçar tão distinta filosofia de vida.
Algumas regras sociais antiquadas como:
«Os mais novos levantam-se para cumprimentar os mais velhos»
ou
«Os homens levantam-se para cumprimentar as senhoras»,
enquanto que
«As senhoras esperam sentadas o cumprimento dos homens»,
devem ser excluídas do dia-a-dia do verdadeiro consultor.
Lembre-se sempre que algumas mulheres vêm estes tipos de gestos como sinal de as quererem rebaixar, muito embora, quando se lembram que, para além de mulheres também gostam de ser mimadas, apreciem estes gestos de atenção.
Talvez um pouco como o decidir que a existência de um talher de peixe é uma perfeita aberração, mas nunca esquecer, quando se vai jantar ao restaurante japonês da moda, de utilizar os famosos pauzinhos, abraçando dessa forma a cultura nipónica.
Caso tenha aspirações a chefe, nunca se rebaixe (muitas vezes) a dizer bom dia, pedir desculpas ou dizer por favor. Estas são posturas que enfraquecem a sua imagem junto dos clientes e equipas. E, como é sabido, mais vale parecer-se inteligente e ficar calado do que abrir a boca e desfazer uma boa imagem (tanto como ser burro e calado ficar em vez de abrir a boca e confirmá-lo).
Em aparente contradição ao exposto acima, numa reunião, nunca se esqueça de dizer umas frases em linguagem corporativa, mesmo que não tenha opinião formada sobre o assunto em debate.
Use sempre vestuário formal (fato, gravata na hipótese masculina) se possível de boa marca que sempre cai melhor e dá um ar mais distinto. Isto é fundamental para intimidar as pessoas e atrasar o mais possível eventuais sinais de pessoa normal.
Seja sempre cordial com os subalternos, mas trate-os com firmeza (afinal eles são seus novos-escravos da atual sociedade).
É fundamental ser atencioso e interessado quando conhecer novas pessoas, mas não perca tempo com elas, caso verifique não serem importantes para os seus objetivos.
Opine muito sobre o que aconteceu no passado, referindo o que foram boas decisões (e.g. abolição da escravatura ou a não discriminação de homossexuais), mas evite dar opiniões sobre o presente ou futuro (é que pode falhar e depois fica-lhe mal).
Por ter sido eu, a maior parte das vezes natural e espontâneo, fui contemplado com soslaios de colegas incomodados. Mas felizmente não deve ter sido por razões de trabalho, senão teriam, com certeza, sido abordadas profissionalmente.  
Tive e tenho ainda a oportunidade de reparar nestes e muitos outros comportamentos, pese embora o facto de me ter que remir e confessar ter falhado redondamente no cumprimento daquela que achava poder ter sido a profissão mais bonita que um dia escolhi.