quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Não voltarei a adormecer sem dizer boa noite!


Aquele dia era passado contigo. Já há muito estava combinado. Vieste-nos buscar, a mim e aos manos, e esperavas no teu carro um pouco mais abaixo da nossa rua, como que escondida (se calhar escondida) atrás dos pinheiros redondos que tinham pouco mais que a minha altura.

Disseram-me que te tinhas portado mal o que para mim foi um alívio, pois consegui uma razão de suportar melhor a tua ausência. Apontaram-te o dedo e sentias-te frágil com uma culpa que não era a tua. Infração decidida por procuradores e juízes que provavelmente não tinham tido infância (coitados), pois de outra forma teriam zelado pela nossa estabilidade. E ao te acusarem, nós, mesmo não estando por dentro dos assuntos, repetimos o gesto dando assim força aos acusadores e consumindo ainda mais a tua energia.

Lembro-me dos primeiros fins-de-semana em que dormimos em tua casa e que eu acordava a chorar baixinho. E apesar de não fazer muito barulho, tu ouvias-me e levavas-me para a tua cama onde eu voltava a adormecer com um sorriso desenhado na cara, porque afinal tu gostavas de mim. Sentia-me quentinha e protegida, enquanto tu me olhavas cheia de ternura e feliz, por momentos. Por conseguires ter-me perto, ainda que por uma fração demasiadamente pequena das nossas vidas.

Tínhamos quartos que arranjaste o melhor que pudeste para nos sentirmos bem e em casa. Compraste um cão bebé que fez as nossas delícias. Davas jantares com amigos que animavam a casa em festas que nos faziam sentir felizes. Mostraste-nos como apreciar as coisas boas da vida. Ensinaste-nos a cozinhar para sabermos saborear os pratos e para nos enchermos de orgulho quando os convidados gabavam o que tínhamos feito. Contavas anedotas que ainda hoje repito aos meus amigos. Fazias partidas que só contagiavam boa disposição. Levaste-nos a conhecer restaurantes (ai aquele The Great American Disaster) com decorações espantosas e música que nos faziam vibrar de alegria. E também onde alguns rapazes (lindos de morrer) trabalhavam. Consegui até ficar apaixonada por um deles a eternidade de um verão.

Pedi-te que voltasses para nós ou nós para ti. Acho que pedi. Não sei se só com o olhar.

Mas um dia, a mana mais velha encontrou uma lâmina de barbear e roupa de homem no teu quarto. Tinhas um namorado que não era o pai e senti uma espécie de traição. Ciúmes, seguramente.

Quando as senhoras das togas e becas te tiraram de nós, só tive uma opção: criar resistências para que me fosses indiferente. Para deixar de sentir aquela dor enorme que parecia fazer-me saltar do peito o coração. Houve uma noite em casa do pai, quando já estava deitada que, em silêncio, sequei até à última lágrima todo o sentimento que tinha por ti.

Continuávamos a ir, de quinze em quinze dias, passar o fim-de-semana contigo por razões da sentença e também para que o pai pudesse ter algum tempo para si. Para namorar, por exemplo.
Mas cada vez mais, sentia que andar de um lado para o outro, não me trazia sossego e só aumentava a minha instabilidade. Precisava de um sítio para crescer. Por outro lado, custava-me dizer-te que não queria ir ter contigo (o que queria era ir viver contigo), mas não conseguia pedir o que quer que fosse ao pai. Não podia ter que escolher entre as duas pessoas de quem gosto mais.

Inventei, portanto, desculpas e razões para me convencer que o melhor era fazer a minha vida em torno do pai (ou melhor: em torno da casa do pai).

Eu sei que te preocupas connosco e só nos queres ajudar. Que já nem queres a tua parte.
Mas pára! PÁRA!
Porque eu não preciso, não quero, porque já sou crescida e sei bem tomar conta de mim.
Tu não queres o meu bem (o dos manos talvez). Só finges querer, mas é em ti que pensas.
Deixa-me. Deixa- me ir. Não quero saber de famílias. Nunca me hei-de casar, de ter filhos. E quando os tiver tudo irá correr bem. Sabes porquê? Por que nunca farei o que tu fizeste. Farei como tenho aprendido que se deve fazer.

E assim aprendi a viver como se não existisses, como se tivesses morrido (pensava eu...).

Um dia ligaram-me do hospital. A enfermeira até foi simpática ao telefone e depois quando cheguei e me levou para o pé de ti.
Tinhas pedido a presença dos teus filhos e só a mim encontraram. Descobri o teu olhar perdido e desesperado. Irradiavas uma dor que senti entrar por mim adentro. Pediste-me para te levar para casa e eu não consegui satisfazer o teu pedido. Nem o teu último pedido.

Nesse dia decidi nunca mais voltar a fazer as pazes com Deus.

Como me ensinou um amigo meu, existe uma forma de viajarmos ao passado para voltarmos a fazer as coisas de outra maneira. É viajando na experiência de outros que já passaram pelo mesmo caminho. Vemos como fizeram, o que obtiveram como resultado e voltamos ao nosso passado para fazermos o nosso futuro correr melhor. 

E uma coisa já mudei:

Não voltarei a adormecer sem dizer boa noite!

Neste momento queria tudo aquilo que deixei fugir e que me faz falta.
Queria ter tempo para ganhar coragem e conseguir dizer à minha mãe o muito que gosto dela.


Boa noite Mãe.
.....


Gosto muito, muito de ti.

3 comentários:

  1. Saudade é a memória do coração! :') É bom conhecer a avó com palavras, uma vez que foi impossível de outra maneira!

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  2. Veio uma lágrima aos olhos. A mensagem que aprendeste nesta lição de vida, foi uma mensagem que fizeste questão de nos passar, e que terei todo o prazer de passar aos meus filhos. Felizmente a parte de ter não ter filhos não se concretizou

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  3. Uau!
    'Avó. Eu sou um dos netos que te pertencem. Não me lembro bem de ti. Mas gosto muito de ti. Como sei? Pois é facil. O pai sempre nos falou de ti. Nesses momentos a voz transportava uma emoção linda,forte e muito especial. Escotei sempre as memórias de ti atento e com todos os ouvidos bem abertos. Assim te sentia de certa forma. De tal maneira que é indiscutível o quão presente estás entre nós.
    O pai teve filhos afinal... e esses filhos são teus também. Grato por tua vida.
    Boa noite Avó.
    Boa noite Mãe.. 'Txin! Txin!.. saúde!'

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