quinta-feira, 9 de abril de 2015

A aparição dos meus anjos


Quando era pequeno, explicaram-me os anjos. Seres celestiais, mensageiros de Deus, junto de nós, pobres mortais. Brancos, com caracóis loiros e grandes asas de penas. Detentores de uma beleza delicada e que emanam forte brilho. Discutir o seu sexo é sinónimo de perda de tempo, pois todos sabemos que não o têm. Embora invisíveis, estão por perto, com a missão de nos protegerem.

É certo que nem todos conseguem sentir os seus anjos, mas eu sinto os meus. E sinto-os especiais. Diferentes das imagens dos livros da catequese e das estátuas nos altares das igrejas. Sinto-os jovens a brincarem entre gargalhares e pulos divertidos. Gritinhos e brinquedos caídos no chão. À noite, enquanto durmo, sou visitado por eles. Desperto do meu profundo sono com um som que me chega das alturas, num canto a duas vozes, por vezes acompanhado pela melodia de um violino.

No início fui sentindo-os. Até que chegou o dia em que se deu a aparição dos meus anjos.

Foi à entrada do nosso prédio. Tinham cabelos aos caracóis, não loiros, mas castanhos. Duas meninas, irmãs (afinal tinham sexo). Vinham acompanhadas pelos pais e, em vez de asas, traziam mochilas às costas. Duma gentileza pouco habitual nos jovens de hoje saudaram-me com um sorriso simpático enquanto me seguravam na porta para eu sair.

Então reparei que só as suas tenras idades me impediam de as achar uma encarnação das irmãs da Gata Borralheira que apareciam nos filmes de animação da minha infância. Um pouco como os cães abandonados, vadios e pulguentos que, quando cachorrinhos são sempre fofinhos. O futuro, contudo, adivinhava-se com facilidades de vidente de feira, bastando observar o desmazelo da mãe, próprio das mulheres que foram abandonadas pela vida e o nanismo do pai que parecia ser a sua maior característica.

Era então aquela dupla a responsável pelos gritos que ouvíamos no andar de cima. Passagens de modelos com os sapatos de salto, certamente subtraídos ao armário da mãe. Berlindes (abafadores aposto) atirados ao chão. Cânticos em si maior que, como toda a gente sabe, é a tonalidade imperfeita do demónio. Já para não falar quando assistimos a jogos de futebol decisivos e nos restam apenas sensações de prazer interrompido por anúncios prematuros de golos. Frustrações motivadas pelas diferentes velocidades dos sinais das televisões conjugadas com uma completa ausência de sensibilidade para a acústica.

Curiosamente, os pais não se ouviam. Nem sequer em intervenções próprias da prática da educação de duas filhas. Talvez já se tivessem rendido. Desistido daquilo que é, a todos, difícil de fazer. Demitido das funções de progenitores educadores. Ou, simplesmente, nunca tivessem sido eles próprios ensinados ou procurado aprender.

Naquele dia, segui o meu caminho incomodado pelo facto de, lá em casa, não termos o sossego que entendo todos merecermos ter nos nossos lares. E quando quase chegava ao trabalho, subindo em passo acelerado a principal avenida da cidade, reparei que junto a um banco do jardim, no chão, dormia um homem (não um velho) alguém duma idade não determinável. À sua volta os seus anjos protetores depenicavam no chão tudo o que pudesse ser resto do seu alimento. Afastei os pensamentos habituais, mas imaginei que um dia, aquele homem que se afastava, sem dúvida, da humanidade por necessidades de adaptação, teria tido com certeza uma casa, talvez mesmo um lar.

Se calhar, quando voltar do trabalho ao fim do dia, compro um saco de pães e desfaço um deles para dar aos anjos cinzentos que protegem o homem que vive debaixo do banco.

E o resto, em chegando a casa, vou ao andar por cima e ofereço-o às duas meninas de caracóis como sinal do meu agradecimento, por viverem, mesmo que entre gritos e pulos, por cima do teto que ainda tenho a sorte de ter. E que me abriga de anjos cinzentos.