Quando
era pequeno, explicaram-me os anjos. Seres celestiais, mensageiros de Deus,
junto de nós, pobres mortais. Brancos, com caracóis loiros e grandes asas de
penas. Detentores de uma beleza delicada e que emanam forte brilho. Discutir o
seu sexo é sinónimo de perda de tempo, pois todos sabemos que não o têm. Embora
invisíveis, estão por perto, com a missão de nos protegerem.
É
certo que nem todos conseguem sentir os seus anjos, mas eu sinto os meus. E
sinto-os especiais. Diferentes das imagens dos livros da catequese e das
estátuas nos altares das igrejas. Sinto-os jovens a brincarem entre gargalhares
e pulos divertidos. Gritinhos e brinquedos caídos no chão. À noite, enquanto
durmo, sou visitado por eles. Desperto do meu profundo sono com um som que me
chega das alturas, num canto a duas vozes, por vezes acompanhado pela melodia
de um violino.
No
início fui sentindo-os. Até que chegou o dia em que se deu a aparição dos meus
anjos.
Foi
à entrada do nosso prédio. Tinham cabelos aos caracóis, não loiros, mas
castanhos. Duas meninas, irmãs (afinal tinham sexo). Vinham acompanhadas pelos
pais e, em vez de asas, traziam mochilas às costas. Duma
gentileza pouco habitual nos jovens de hoje saudaram-me com um sorriso
simpático enquanto me seguravam na porta para eu sair.
Então
reparei que só as suas tenras idades me impediam de as achar uma encarnação das
irmãs da Gata Borralheira que apareciam nos filmes de animação da minha
infância. Um pouco como os cães abandonados, vadios e pulguentos que, quando
cachorrinhos são sempre fofinhos. O futuro, contudo, adivinhava-se com
facilidades de vidente de feira, bastando observar o desmazelo da mãe, próprio
das mulheres que foram abandonadas pela vida e o nanismo do pai que parecia ser
a sua maior característica.
Era
então aquela dupla a responsável pelos gritos que ouvíamos no andar de cima.
Passagens de modelos com os sapatos de salto, certamente subtraídos ao armário
da mãe. Berlindes (abafadores aposto) atirados ao chão. Cânticos em si maior
que, como toda a gente sabe, é a tonalidade imperfeita do demónio. Já
para não falar quando assistimos a jogos de futebol decisivos e nos restam
apenas sensações de prazer interrompido por anúncios prematuros de golos.
Frustrações motivadas pelas diferentes velocidades dos sinais das televisões
conjugadas com uma completa ausência de sensibilidade para a acústica.
Curiosamente,
os pais não se ouviam. Nem sequer em intervenções próprias da prática da
educação de duas filhas. Talvez já se tivessem rendido. Desistido daquilo que
é, a todos, difícil de fazer. Demitido das funções de progenitores educadores.
Ou, simplesmente, nunca tivessem sido eles próprios ensinados ou procurado
aprender.
Naquele
dia, segui o meu caminho incomodado pelo facto de, lá em casa, não termos o
sossego que entendo todos merecermos ter nos nossos lares. E quando quase chegava
ao trabalho, subindo em passo acelerado a principal avenida da cidade, reparei
que junto a um banco do jardim, no chão, dormia um homem (não um velho) alguém
duma idade não determinável. À sua volta os seus anjos protetores depenicavam
no chão tudo o que pudesse ser resto do seu alimento. Afastei
os pensamentos habituais, mas imaginei que um dia, aquele homem que se afastava, sem
dúvida, da humanidade por necessidades de adaptação, teria tido com certeza uma
casa, talvez mesmo um lar.
Se
calhar, quando voltar do trabalho ao fim do dia, compro um saco de pães e
desfaço um deles para dar aos anjos cinzentos que protegem o homem que vive
debaixo do banco.
E
o resto, em chegando a casa, vou ao andar por cima e ofereço-o às duas meninas
de caracóis como sinal do meu agradecimento, por viverem, mesmo que entre gritos e pulos,
por cima do teto que ainda tenho a sorte de ter. E que me abriga de anjos
cinzentos.