sábado, 15 de novembro de 2014

Há que preparar viagens

 

Há alguns dias fui ao hospital fazer exames. Como é habitual tirei a senha ‘A’ e esperei o sinal sonoro que nos faz reparar, num ecrã, qual o número chamado. Tenho o costume de aproveitar os momentos ditos mortos para fazer alguma coisa. Uma das minhas atividades mais comuns quando, por exemplo, viajo num comboio ou espero numa sala feita exatamente para isso (esperar), é ler. E já que nestas ocasiões a delonga é quase sempre inevitável, aproveito e puxo do livro do momento.
Infelizmente a minha dificuldade crónica de concentração, adjuvada pelos tais sinais sonoros ‘Pling’ que nos obrigam a olhar o monitor, fazem-me concluir que a sala está cheia e faltam ainda muitos ‘Plings’ até que chegue a minha vez. Quebrada a atenção, guardo então a literatura e dedico-me à segunda prática plausível nestas situações: observar as pessoas que me rodeiam.

E reparo que, para além de um ou outro caso que a natureza ao acaso escolheu, a maior parte da população da sala é composta por casais cuja idade já vai avançada. Como um dia ouvi dum velho amigo, ‘Qualquer que seja a idade que temos, velhos são aqueles que têm mais dez anos que nós.’ Pares que me fazem imaginar que o pensamento da senhora rondará qualquer coisa como, ‘Que chatice esta demora quando ainda tenho o pó para limpar e o almoço para fazer. Não podias ter escolhido outro dia para adoecer.’ Ou o do marido ‘Logo hoje que é o dia do almoço do clube lá do bairro e que tinha jurado desforrar-me na sueca daqueles velhotes que me ganharam a última vez. De certeza que inventaste a maleita só para me impedires de ir’
(E eu que também lá estava, serei acaso ou velho).

Logo penso na sorte que têm de poderem esperar, um ao lado do outro, de já não estarem sozinhos, só um deles. 
Distancio a reflexão e vejo como é o nosso caminho até ao fim da vida. Aguardando mais uns anos, uns meses, dias… Tentando enganar a vida com ciências que apenas nos fazem durar, não viver.
Olho a natureza e penso que outros animais não cientes (claro), se obrigam a resistir. Tento lembrar-me daquele episódio na televisão sobre as praias onde baleias vão morrer.
Contaram-me em tempos que os cervos, quando chegam perto do fim, sobem à montanha para se lá irem finar.
Penso frugalmente num fim para mim que não sobrecarregue os que ainda viverão. E imagino uma montanha para mim. Uma casa de madeira perto dos cervos. Uma viagem num barco à vela até que as ondas empurrem os restos de um naufrágio e de mim para junto de baleias.

Penso em doar o meu corpo para que jovens imberbes (elas felizmente) possam partilhar bocados do que um dia fui e dedicarem-se aos cortes, mais ou menos precisos, da investigação anatómica. Qualquer coisa de útil para alguém que, já agora, venha a ser proveitosa para os outros.
Para fazerem durar ainda mais?

O que mais me preocupa é saber a linha que separa a consciência fria do que acima disse, da incapacidade desesperada de não conseguir deixar de resistir a durar. Para poder decidir o soltar de amarras ou o subir à montanha. É que, como me ensinaram, há que preparar as viagens.

Mas por agora, mal vejo a hora de chegar o fim (só de semana), para proceder a saudáveis transfusões de taninos de origens aragonesas e outras, acompanhadas por favas de Arraiolos. E, felizmente, também pela minha mulher (um dia será velha ao meu lado) que quase me bate quando lhe falo em adriças ou casas de madeira.  

1 comentário:

  1. Está divertido este artigo (diz-me uma consciência mais fria). Adriças não tenho. Mas montanha..!? Que dizes de cavar um buraco para compostar a carcaça e dar suporte a um carvalho ou sobreiro? Será que conta como forma de prolongar a vida?
    Pensamos nisso mais tarde.... agora não dá jeito que tenho um voo para apanhar.

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