quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Cultura ou erudição


Há dias fui assistir à defesa da tese de doutoramento do meu amigo João. Três horas e meia que se revelaram de uma dureza incrível, quase cruel. O João parecia tenso mas lá se ia aguentando estoicamente, suportando a sua Cruz. O problema foi quando eu resolvi realizar o esforço de tentar entender e acompanhar todas aquelas argumentações que me deixaram numa espécie de transe, zonzo, como que embriagado. Já devia saber que não nos devemos esforçar para além dos nossos limites, sob pena de perigos, como bilhas de gás a provocarem hérnias irreversíveis.

Apesar das dificuldades, lá consegui reconhecer no júri uma concentração de erudição que jamais tinha sentido. Jurados todos eles togas e penteados de génios. Cabeleiras que imagino serem a continuação das mentes irrequietas e revoltas que por baixo daquelas habitam, sem se adivinharem grandes esperanças de um dia virem a ser domadas. Temi pelo normal corte de cabelo do João. Imaginei que detetassem nele a falta do perfil adequado para membro da academia.

A única senhora, de entre os cinco Doutores, pareceu-me ter a exclusividade de um penteado não saído diretamente de uma noite de confrontos com a almofada. Causou-me até uma certa ternura uma vez que me trouxe recordações da minha bisavó Joana que nunca conheci para além dos daguerreótipos a sépia que preenchiam paredes e mesas na casa de família da Beira Alta. Talvez só a cor creme dos sapatos de verniz não batesse certo com o que sempre imaginei ser o calçado daquela minha antepassada.

Em cada intervenção dos vários elementos do júri, pareceu-me estarem a corrigir exercícios, aplicando como que com uma grelha de papel transparente a axiomática que de cor sabiam. Como que a puxar de togas e penteados (noutras instituições dir-se-ia galões). De uma forma de quem chega e diz: ‘Repare, estimado candidato, que antes de si, sou eu muito mais importante por gama ter o sinal negativo.’ (não devem ser muitas as oportunidades de fazerem marcar a sua notoriedade).

Sempre me pareceu que os eruditos passavam uma vida inteira a estudar os outros até à exaustão, sem terem tempo para ideias próprias. Reagindo apenas com críticas (positivas ou negativas), o que resulta numa certa dificuldade na análise de novas ideias.
Entretanto, o João mantinha a sua postura adequada à situação, portador dum sorriso amável (pareceu-me vislumbrar uma técnica de sorrir à guisa da Gioconda, uma vez que os olhos não pareciam sorrir o mesmo que a boca), sempre melhor daqueles que o interpelavam, porque a matéria que expôs e defendeu foi a duma disciplina por ele inventada e que ainda poucos percebem.

Deixei entrementes o meu pensamento vaguear por um certo dia em que me perguntaram o que achava mais importante:

Cultura ou erudição?

A pergunta deixou-me cristalizado por uns instantes até me decidir pela opção da cultura.
Recordo o meu professor de história do décimo ano a dizer: ‘Culto é aquele que consegue olhar em volta e perceber o que o rodeia.’
Desde então sempre olhei para as coisas tentando alcançar como poderia desembaraçar-me, se um dia ficasse sozinho numa ilha qual Robinson Crusoe. Creio mesmo que este ensinamento (aparentemente exíguo) me tem guiado durante toda a minha existência.
No exame oral ao qual fui submetido aquando da admissão à faculdade, o professor, ao identificar a minha escolha pela Matemática Aplicada à Computação, sentenciou, ‘Mais um que só vai entender de uma só coisa na vida.’ ao que eu contrapus, ‘Não concordo. Para poder servir os meus futuros clientes, vou ter que estudar e compreender cada uma das suas atividades.’

Sempre fiquei inquieto quando lia ou ouvia um termo ou conceito desconhecido. Não descanso enquanto não fico por dentro do assunto recorrendo logo que possível a dicionários, enciclopédias, Google. Assim como sinto um tremendo contento, quando vejo referências a pequenas coisas como, por exemplo, o facto de em todas a línguas que conheço, a palavra ‘noite’ ser resultado da letra ‘N’ (representante dum número infinito numa série) seguido pelo número oito que, na horizontal, é o símbolo de infinito. Tudo isto porque os antigos temiam que, quando o sol se punha, a escuridão da noite pudesse não ter fim.
Este é o tipo de conhecimento que parece não nos trazer nada de útil, mas que me dá um prazer imenso por sentir que compreendo as coisas.     

Mas retomando o João, sempre o vi na localização da virtude: entre culto e erudito.

Sem o gosto pela erudição, não teria tido a paixão e empenho que o caracterizaram durante o desenvolvimento desta sua tese.
Por outro lado, sempre descobri o João sôfrego de conhecimento de coisas aparentemente supérfluas, como é o caso da identificação de constelações e planetas.
Não descansa enquanto não põe em prática as teorias geradas ou estudadas.

Mas existem outros condimentos essenciais para uma verdadeira inteligência que fazem do João uma pessoa digna de distinção e louvor.
Tem uma humildade (convenientemente gerida) que só não vê quem não está habituado a querer perceber os outros.
Detém um humor que só me faz olhar para os britânicos (distinguidos nesta especialidade) como meros meninos de coro. 
Desconfia que pode haver pessoas mais inteligentes, humildes ou com mais refinado humor que ele.
E tenho ainda fortes suspeitas que não deixa que outros pensem por ele.

Não é o simples amigo da rede social. E não é pela sua inteligência que o considero como Amigo. Isso faria de todos os inteligentes meus amigos, o que não é verdade. O facto de o olhar como tal, não foi uma escolha minha, mas sim resultado da sua maneira de ser e de agir.

O João é o exemplo do que os colegas da sua empresa (e muitos outros) um dia queriam vir a ser.

                                                                                                                                
Se o apanhar a jeito hoje, sou bem capaz de lhe dar os parabéns. Não por ser Doutor, não por fazer simplesmente quarenta e nove anos, mas sim por tudo aquilo que tem sido e conseguido, nestas (quase) cinco décadas.


Hoje, se me perguntassem outra vez, não teria qualquer dúvida…

Entre culto e erudito preferia ser João.

1 comentário:

  1. Fantástico. Parabéns Miguel pelo excelente texto. Parabéns João por seres quem és e por teres um amigo como o Miguel.

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