Há dias fui assistir à defesa da tese de doutoramento
do meu amigo João.
Três horas e meia que se
revelaram de uma dureza incrível,
quase cruel. O João
parecia tenso mas lá
se ia aguentando estoicamente, suportando a sua Cruz. O problema foi quando eu
resolvi realizar o esforço
de tentar entender e acompanhar todas aquelas argumentações que me deixaram numa espécie de transe, zonzo, como que
embriagado. Já
devia saber que não
nos devemos esforçar
para além dos nossos limites,
sob pena de perigos, como bilhas de gás
a provocarem hérnias irreversíveis.
Apesar
das dificuldades, lá
consegui reconhecer no júri
uma concentração
de erudição que jamais tinha
sentido. Jurados todos eles togas e penteados de génios. Cabeleiras que imagino
serem a continuação
das mentes irrequietas e revoltas que por baixo daquelas habitam, sem se
adivinharem grandes esperanças
de um dia virem a ser domadas. Temi pelo normal corte de cabelo do João. Imaginei que detetassem nele
a falta do perfil adequado para membro da academia.
A única senhora, de entre os cinco
Doutores, pareceu-me ter a exclusividade de um penteado não saído diretamente de uma noite de
confrontos com a almofada. Causou-me até
uma certa ternura uma vez que me trouxe recordações da minha bisavó
Joana que nunca conheci para além
dos daguerreótipos a sépia que preenchiam paredes e
mesas na casa de família
da Beira Alta. Talvez só a
cor creme dos sapatos de verniz não
batesse certo com o que sempre imaginei ser o calçado daquela minha antepassada.
Em cada
intervenção dos vários elementos do júri, pareceu-me estarem a
corrigir exercícios,
aplicando como que com uma grelha de papel transparente a axiomática que de cor sabiam. Como que
a puxar de togas e penteados (noutras instituições dir-se-ia galões).
De uma forma de quem chega e diz: ‘Repare,
estimado candidato, que antes de si, sou eu muito mais importante por gama ter
o sinal negativo.’
(não devem ser muitas as
oportunidades de fazerem marcar a sua notoriedade).
Sempre
me pareceu que os eruditos passavam uma vida inteira a estudar os outros até à exaustão,
sem terem tempo para ideias próprias.
Reagindo apenas com críticas
(positivas ou negativas), o que resulta numa certa dificuldade na análise de novas ideias.
Entretanto,
o João mantinha a sua postura
adequada à situação, portador dum sorriso amável (pareceu-me vislumbrar uma técnica de sorrir à guisa da Gioconda, uma vez que
os olhos não pareciam sorrir o
mesmo que a boca), sempre melhor daqueles que o interpelavam, porque a matéria que expôs e defendeu foi a duma
disciplina por ele inventada e que ainda poucos percebem.
Deixei
entrementes o meu pensamento vaguear por um certo dia em que me perguntaram o
que achava mais importante:
Cultura ou erudição?
A
pergunta deixou-me cristalizado por uns instantes até me decidir pela opção da cultura.
Recordo
o meu professor de história
do décimo ano a dizer: ‘Culto é aquele que consegue olhar em
volta e perceber o que o rodeia.’
Desde
então sempre olhei para as
coisas tentando alcançar
como poderia desembaraçar-me,
se um dia ficasse sozinho numa ilha qual Robinson Crusoe. Creio mesmo que este
ensinamento (aparentemente exíguo)
me tem guiado durante toda a minha existência.
No
exame oral ao qual fui submetido aquando da admissão à faculdade, o professor, ao identificar a minha escolha
pela Matemática Aplicada à Computação, sentenciou, ‘Mais um que só vai entender de uma só coisa na vida.’ ao que eu contrapus, ‘Não concordo. Para poder servir os meus futuros clientes, vou
ter que estudar e compreender cada uma das suas atividades.’
Sempre
fiquei inquieto quando lia ou ouvia um termo ou conceito desconhecido. Não descanso enquanto não fico por dentro do assunto
recorrendo logo que possível
a dicionários, enciclopédias, Google. Assim como sinto
um tremendo contento, quando vejo referências
a pequenas coisas como, por exemplo, o facto de em todas a línguas que conheço, a palavra ‘noite’ ser resultado da letra ‘N’ (representante dum número
infinito numa série)
seguido pelo número
oito que, na horizontal, é o
símbolo de infinito. Tudo
isto porque os antigos temiam que, quando o sol se punha, a escuridão da noite pudesse não ter fim.
Este é o tipo de conhecimento que
parece não nos trazer nada de útil, mas que me dá um prazer imenso por sentir que
compreendo as coisas.
Mas
retomando o João,
sempre o vi na localização
da virtude: entre culto e erudito.
Sem o
gosto pela erudição,
não teria tido a paixão e empenho que o caracterizaram
durante o desenvolvimento desta sua tese.
Por
outro lado, sempre descobri o João
sôfrego de conhecimento de
coisas aparentemente supérfluas,
como é o caso da identificação de constelações e planetas.
Não descansa enquanto não põe em prática as teorias geradas ou
estudadas.
Mas
existem outros condimentos essenciais para uma verdadeira inteligência que fazem do João uma pessoa digna de distinção e louvor.
Tem uma
humildade (convenientemente gerida) que só não vê quem não está habituado a querer perceber os
outros.
Detém um humor que só me faz olhar para os britânicos (distinguidos nesta
especialidade) como meros meninos de coro.
Desconfia
que pode haver pessoas mais inteligentes, humildes ou com mais refinado humor
que ele.
E tenho
ainda fortes suspeitas que não
deixa que outros pensem por ele.
Não é o simples amigo da rede social. E não é pela sua inteligência que o considero como Amigo.
Isso faria de todos os inteligentes meus amigos, o que não é verdade. O facto de o olhar como tal, não foi uma escolha minha, mas sim
resultado da sua maneira de ser e de agir.
O João é o exemplo do que os colegas da sua empresa (e muitos
outros) um dia queriam vir a ser.
Se o apanhar a jeito hoje, sou
bem capaz de lhe dar os parabéns. Não por ser Doutor, não
por fazer simplesmente quarenta e nove anos, mas sim por tudo aquilo que tem
sido e conseguido, nestas (quase) cinco décadas.
Hoje,
se me perguntassem outra vez, não
teria qualquer dúvida…
Entre
culto e erudito preferia ser João.
Fantástico. Parabéns Miguel pelo excelente texto. Parabéns João por seres quem és e por teres um amigo como o Miguel.
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