quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Não foi nada Sr. Engenheiro


De há uns tempos para cá, tem-me apetecido falar com o pai.

Recordo momentos da minha infância com sorrisos, nos lábios e no olhar. Lembro-me das férias em casa dos avós na Beira Alta e na FNAT em Albufeira, dos primeiros vinte e cinco tostões que ganhei por ter ajudado o pai a cortar a grama do quintal.

Lembro-me que, quando algum de nós (dos três manos) era surpreendido por uma febre intestinal (vulgo nome da altura para gastroenterite), esperávamos a Tia Helena, amiga, já família e nossa pediatra. Quase só tardava momentos de mudas de sapatos de salto por outros mais rasos, para conduzir e que a acompanhavam sempre no seu Taunus azul. Depois de nos observar entre palpações abdominais e peculiares gargalhares dos quais jamais ouvi, qualquer tipo de imitação (ainda que ténue), sentenciava dias de cama e rigorosas dietas de canjas de galinha (primeiro só caldo). E, claro está, a completa abolição da papa Cérélac preparada com leite e açúcar derivado de se tratar de argamassa suficiente para danificar os nossos jovens aparelhos digestivos.

Estes dias em que éramos cativos na nossa própria cama (recordo até os pijamas às riscas que não me deixam mentir) tornavam-se de alguma forma especiais, quase de festa, pois o pai decretava ser maleita suficiente para que fosse colocada a televisão no quarto do enfermo de serviço. Depois do jantar, lá se reunia toda a família para assistir à série ou filme em cartaz TV. Desta forma o doente era como que a estrela do dia.

Lembro-me com cristalina clareza, quando um dia assistíamos a uma daquelas cenas mais íntimas na qual um qualquer Humphrey sussurrava a uma qualquer Lauren, palavras não acompanhadas de legendas. E eu perguntei ao pai ‘Porque é que não traduziram? Era conversa de chacha?’ o que produziu de imediato uma inesperada, mas bem disposta risota no responsável pela minha existência.

Certo dia, foi também aquela argamassa, a responsável pela apendicite aguda da mana (assim o disse a nossa familiar médica) e que a levou a sessões especiais de televisão, em quarto quase de princesa, no hospital da Cruz Vermelha.

Vejo aqueles tempos em que andávamos de bicicleta na rua e o pai nos alertava, 'Não passem junto dos portões, porque se sai algum miúdo a correr, não têm tempo de o evitar'. Talvez tão simples cuidado tenha contribuído para nunca tivesse tido qualquer acidente quando, já em adulto, me deslocava no trânsito na minha moto 650cc.

Recordo uma imensa variedade de experiências que fez questão que vivêssemos. Com apenas sete anos ensinou-me a guiar o Saab, de motor desligado em duzentos metros dum declive mínimo que a nossa rua (impasse) era. Saía da garagem já ao volante e, com a força dum ligeiro empurrão, tinha como missão estacionar o carro um pouco mais à frente junto ao passeio e, sobretudo, bem paralelo a este.

Lembro das tardes de fim de semana em que fazíamos tiro ao alvo com uma pressão de ar e da recompensa do 'ping' quando acertávamos na mouche.
Do volteio, da ginástica de obstáculos e das coboiadas nas quais o instrutor nos fazia empurrar os cavalos para as alagadas fundações da atual Faculdade de Ciências onde mais tarde estudei.
Do pai me mostrar o seu florete e o gilet do colégio e de me ter comprado um livro que explicava, com imagens, a fundos e guardas. Não terá sido, com certeza, por coincidência que eu, aos quarenta, resolvi escolher a esgrima como prática desportiva.

Certo dia o pai foi assistir na escola primária a uma demonstração de habilidades várias executadas pelos alunos da minha classe e quase que paralisava de horror ao ver-me fazer uma divisão de forma aparentemente errada. Só recuperou quando a professora explicou estar tudo certo, pois estava eu a trabalhar em base seis e não na esperada base dez. Calculo que ter aprendido esta matemática (dita moderna) tenha sido razão bastante para nada me ter custado, mais tarde na faculdade, perceber contas nos sistemas binário, octal e hexadecimal.

Lembro-me do dia em que fomos assistir à sessão dupla no cinema Restelo com o tão desejado Flipper  como segundo filme (o mais importante). 

Nunca falámos muito e, no entanto, tinha tanto para lhe perguntar. Sem me aperceber queria pergunta-lhe como se crescia.

Recordo exemplos de serões de trabalho, entre plantas espalhadas no estirador, contas na máquina calculadora mecânica com aquelas manivelas e o 'pling' a anunciar o fim da sucessão das somas (fingindo multiplicações). Mas também do viver sem se esquecer de si, facto que nos levava a ficar amiúde, em casa ao sábado à noite, acompanhados pela Mimi, uma senhora já de alguma idade (talvez uns longínquos quarenta anos).

A Mimi gostava muito de nós e ocultava com carinho alguma asneira menor que nos tivesse como protagonistas. Ainda hoje recordamos a três e com alegria, o dia em que o pai se ataviava e perfumava no andar de cima, com o afinco que aquele dia da semana merecia. Estávamos nós a ver televisão quando as já compridas pernas do mano foram contagiadas pelas convulsões do seu riso e, sem querer, empurraram a mesa onde se encontrava a televisão, fazendo com que esta caísse, com ruído, no chão. Ato continuo ouvimos do andar de cima a frase que já se adivinhava: ‘Que barulho foi esse?’, pergunta prontamente respondida pela Mimi:

‘Não foi nada Sr. Engenheiro. Foi só a televisão que caiu.’

Ainda hoje me causa alguma estranheza não ter, nesse dia, havido um pé de vento valente.         

De muito mais vivências me lembro. Entre simples e mais elaboradas, entre agradáveis e outras nem tanto, mas que (entendo hoje) tiveram que acontecer no momento certo para que o resultado fosse o que hoje sou.

Falámos tão pouco e queria ter falado mais. Mas o certo é que as formas de estar e de agir foram ficando como que coladas a mim. Sei hoje que muito mais do dizer as coisas para ensinar os filhos a crescer, há que as fazer para que eles as sintam naturais e que passem a fazer parte de si.

Falámos tão pouco. E no entanto queria que tivéssemos falado muito mais.
Eu que nunca fui dessas mariquices tal como aqueles tempos nos ensinaram. Nada de colos, abraços e pieguices. Acho até que passei com uma certa distinção neste exame que dura há cerca de cinquenta anos.

E hoje sinto vontade de deitar tudo a perder. E que venha de lá a zorra. Não me importo de chumbar. Porque me apetece conversar tudo o que não falámos.

Há já uns anos que as quartas-feiras são reservadas para almoçarmos juntos. Senti primeiro uma espécie de obrigação de lhe fazer companhia que logo se transformou em vontade de ficar mais tempo, de não ter que ir trabalhar, só para ficarmos a conversar tudo aquilo que não dissemos e que ainda temos tempo de pôr em dia. De irmos passear, caçar, viajar. Para eu lhe possa dizer o quanto gosto de si. O quanto lhe agradeço ter-me feito ser o que hoje sou.

Sempre que por alguma razão não conseguirmos almoçar juntos, vou fazer como se estivéssemos e continuar a nossa conversa que nunca havemos de acabar. E, se por perto calharem filhos e netos, sou bem capaz de lhes explicar o seu ponto de vista sobre a problemática do melhor posicionamento da mira e do teodolito portátil, nos pinhais da Beira Alta.

1 comentário:

  1. E quando é que vamos viajar juntos? E quando é que me contas a história do teodolito? Ainda bem que foi só a televisão.. gostei (=

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