De há uns tempos para cá, tem-me
apetecido falar com o pai.
Recordo momentos da minha
infância com sorrisos, nos lábios e no olhar. Lembro-me das férias em casa dos
avós na Beira Alta e na FNAT em Albufeira, dos primeiros vinte e cinco tostões
que ganhei por ter ajudado o pai a cortar a grama do quintal.
Lembro-me que, quando algum de
nós (dos três manos) era surpreendido por uma febre intestinal (vulgo nome da
altura para gastroenterite), esperávamos a Tia Helena, amiga, já família e
nossa pediatra. Quase só tardava momentos de mudas de sapatos de salto por outros
mais rasos, para conduzir e que a acompanhavam sempre no seu Taunus azul. Depois de nos observar
entre palpações abdominais e peculiares gargalhares dos quais jamais ouvi,
qualquer tipo de imitação (ainda que ténue), sentenciava dias de cama e rigorosas
dietas de canjas de galinha (primeiro só caldo). E, claro está, a completa
abolição da papa Cérélac preparada
com leite e açúcar derivado de se tratar de argamassa suficiente para danificar
os nossos jovens aparelhos digestivos.
Estes dias em que éramos cativos
na nossa própria cama (recordo até os pijamas às riscas que não me deixam
mentir) tornavam-se de alguma forma especiais, quase de festa, pois o pai
decretava ser maleita suficiente para que fosse colocada a televisão no quarto
do enfermo de serviço. Depois do jantar, lá se reunia toda a família para
assistir à série ou filme em cartaz TV. Desta forma o doente era como que a
estrela do dia.
Lembro-me com cristalina clareza,
quando um dia assistíamos a uma daquelas cenas mais íntimas na qual um qualquer
Humphrey sussurrava a uma qualquer Lauren, palavras não acompanhadas de
legendas. E eu perguntei ao pai ‘Porque é que não traduziram? Era conversa de
chacha?’ o que produziu de imediato uma inesperada, mas bem disposta risota no
responsável pela minha existência.
Certo dia, foi também aquela
argamassa, a responsável pela apendicite aguda da mana (assim o
disse a nossa familiar médica) e que a levou a sessões especiais de televisão,
em quarto quase de princesa, no hospital da Cruz Vermelha.
Vejo aqueles tempos em que
andávamos de bicicleta na rua e o pai nos alertava, 'Não passem junto dos
portões, porque se sai algum miúdo a correr, não têm tempo de o evitar'. Talvez
tão simples cuidado tenha contribuído para nunca tivesse tido qualquer acidente
quando, já em adulto, me deslocava no trânsito na minha moto 650cc.
Recordo uma imensa variedade de
experiências que fez questão que vivêssemos. Com apenas sete anos ensinou-me a
guiar o Saab, de motor desligado em duzentos metros dum declive mínimo que a
nossa rua (impasse) era. Saía da garagem já ao volante e, com a força dum
ligeiro empurrão, tinha como missão estacionar o carro um pouco mais à frente
junto ao passeio e, sobretudo, bem paralelo a este.
Lembro das tardes de fim de
semana em que fazíamos tiro ao alvo com uma pressão de ar e da recompensa do
'ping' quando acertávamos na mouche.
Do volteio, da ginástica de
obstáculos e das coboiadas nas quais o instrutor nos fazia empurrar os cavalos
para as alagadas fundações da atual Faculdade de Ciências onde mais tarde
estudei.
Do pai me mostrar o seu florete e
o gilet do colégio e de me ter comprado um livro que explicava, com imagens, a fundos e guardas. Não terá sido, com certeza, por coincidência que eu, aos
quarenta, resolvi escolher a esgrima como prática desportiva.
Certo dia o pai foi assistir na
escola primária a uma demonstração de habilidades várias executadas pelos alunos da minha classe e quase que
paralisava de horror ao ver-me fazer uma divisão de forma aparentemente errada.
Só recuperou quando a professora explicou estar tudo certo, pois estava eu a
trabalhar em base seis e não na esperada base dez. Calculo que ter aprendido
esta matemática (dita moderna) tenha sido razão bastante para nada me ter
custado, mais tarde na faculdade, perceber contas nos sistemas binário, octal e
hexadecimal.
Lembro-me do dia em que fomos
assistir à sessão dupla no cinema Restelo com o tão desejado Flipper como segundo filme (o mais importante).
Nunca falámos muito e, no entanto, tinha tanto para lhe perguntar. Sem me aperceber queria pergunta-lhe como se
crescia.
Recordo exemplos de serões de
trabalho, entre plantas espalhadas no estirador, contas na máquina calculadora
mecânica com aquelas manivelas e o 'pling' a anunciar o fim da sucessão das somas
(fingindo multiplicações). Mas também do viver sem se esquecer de si, facto
que nos levava a ficar amiúde, em casa ao sábado à noite, acompanhados pela
Mimi, uma senhora já de alguma idade (talvez uns longínquos quarenta anos).
A Mimi gostava muito de nós e
ocultava com carinho alguma asneira menor que nos tivesse como protagonistas.
Ainda hoje recordamos a três e com alegria, o dia em que o pai se ataviava e
perfumava no andar de cima, com o afinco que aquele dia da semana merecia.
Estávamos nós a ver televisão quando as já compridas pernas do mano foram contagiadas
pelas convulsões do seu riso e, sem querer, empurraram a mesa onde se
encontrava a televisão, fazendo com que esta caísse, com ruído, no chão. Ato
continuo ouvimos do andar de cima a frase que já se adivinhava: ‘Que barulho
foi esse?’, pergunta prontamente respondida pela Mimi:
‘Não foi nada Sr. Engenheiro. Foi
só a televisão que caiu.’
Ainda hoje me causa alguma
estranheza não ter, nesse dia, havido um pé de vento valente.
De muito mais vivências me
lembro. Entre simples e mais elaboradas, entre agradáveis e outras nem tanto,
mas que (entendo hoje) tiveram que acontecer no momento certo para que o
resultado fosse o que hoje sou.
Falámos tão pouco e queria ter
falado mais. Mas o certo é que as formas de estar e de agir foram ficando como
que coladas a mim. Sei hoje que muito mais do dizer as coisas para ensinar os
filhos a crescer, há que as fazer para que eles as sintam naturais e que passem
a fazer parte de si.
Falámos tão pouco. E no entanto
queria que tivéssemos falado muito mais.
Eu que nunca fui dessas
mariquices tal como aqueles tempos nos ensinaram. Nada de colos, abraços e
pieguices. Acho até que passei com uma certa distinção neste exame que dura há
cerca de cinquenta anos.
E hoje sinto vontade de deitar
tudo a perder. E que venha de lá a zorra. Não me importo de chumbar. Porque me
apetece conversar tudo o que não falámos.
Há já uns anos que as
quartas-feiras são reservadas para almoçarmos juntos. Senti primeiro uma
espécie de obrigação de lhe fazer companhia que logo se transformou em vontade
de ficar mais tempo, de não ter que ir trabalhar, só para ficarmos a conversar
tudo aquilo que não dissemos e que ainda temos tempo de pôr em dia. De irmos
passear, caçar, viajar. Para eu lhe possa dizer o quanto gosto de si. O quanto
lhe agradeço ter-me feito ser o que hoje sou.
Sempre que por alguma razão não
conseguirmos almoçar juntos, vou fazer como se estivéssemos e continuar a nossa
conversa que nunca havemos de acabar. E, se por perto calharem filhos e netos,
sou bem capaz de lhes explicar o seu ponto de vista sobre a problemática do
melhor posicionamento da mira e do teodolito portátil, nos pinhais da Beira Alta.
E quando é que vamos viajar juntos? E quando é que me contas a história do teodolito? Ainda bem que foi só a televisão.. gostei (=
ResponderEliminar