domingo, 5 de outubro de 2014

Ainda há tempo infinito


Desde sempre que as pessoas, ao tentarem adivinhar-me a idade, me fazem mais novo, em média, dois anos.
Não sei se por ser o último de três irmãos, se por ter sido o mais jovem do grupo de amigos das férias. No trabalho tem ajudado o facto de privar com colegas que rondam as idades dos meus filhos e que me acharam apenas um pouco mais velho que eles.
Hoje acredito que se deva ao facto de ter quase tantos cabelos quantos os que tinha aos quinze e, no meio de tantos, se tanto, três veladas cãs. E talvez o meu tipo de pele que na adolescência me povoou a cara com os mais variados tipos de erupções, me compense agora com a suavização do efeito das rugas.

Talvez por isto, só agora que tenho quase cinquenta e dois, comece a sentir o efeito dos cinquenta.

Como é sabido há dois motivos para levarmos um automóvel à revisão: ou pelos quilómetros atingidos ou pelo número de meses decorridos. Também para os homens existem duas indiscutíveis razões que os levam a visitar o médico sem aparente razão: ou porque passaram os cinquenta ou porque foram avós. No meu caso ambas se verificaram e lá fui eu.

‘Pois faz muito bem em fazer exercício físico’, disse-me o doutor. ‘Atitude inteligente ter deixado os cigarros’, acrescentou. ‘Está muito bem para a sua idade’.
E lá se seguiu a previsível explicação de que a partir dos cinquenta, é de prudência elementar fazer uma série de exames que mitiguem os riscos de doenças graves.
(doença grave, é a forma humanamente correta que hoje em dia se usa para designar casos de cancro). 
Por muito positivo que me tenha habituado a ser, não foi preciso mais que um par de horas para que me tivesse ocorrido a hipótese: ‘E se estas coisas que só acontecem a parentes afastados que nunca conhecemos e aos vizinhos dos colegas do escritório, me surpreendessem também a mim?’  

Quando tinhas os meus seis anos, questionava-me perplexo sobre quantos dias demoraria até que acordasse e onde estaria depois do dia em que morresse.
Tirando esta fase da minha vida, o tema da morte não me voltou a apoquentar e hoje julgo conviver bem com a ideia (provavelmente passei a achar-me eterno).
Contudo, ao pensar na hipótese de tal me vir a acontecer nos próximos seis meses, ou no próximo ano, fiquei preocupado. Como iria fazer e sobretudo dizer uma série de coisas que fui sempre adiando para momentos de maior vagar e inspiração?
Como iria eu dizer aos meus filhos, à minha mulher e aos meus amigos tudo aquilo que não tive ainda oportunidade de dizer?

‘Escrevendo!’, pensei.

Mas para quê escrever? Para que viva enquanto houver alguém que tenha ouvido falar de mim? Não condiz com aquela que julgo ser a minha natureza. Quem sou eu para achar que posso deixar alguma coisa aos que ficam e virão? Se não temos o direito de julgar os outros, porque poderemos achar que temos o direito de os ensinar? Para ajudar à evolução da humanidade? Evolução que só tem destruído o mundo como um cancro destrói as células dum corpo?

Pensei que não seria para os outros que escreveria, mas sim para mim como forma de expurgo das minhas toxinas mentais.
Mas se escrever para os outros e não só para mim, serei sem dúvida, mais genuíno e, assim, quem me ler descobrirá mais de mim. Lembrei-me até de propor a um terapeuta analisar-me à distância, iniciando assim uma nova era nas técnicas da especialidade Freudiana.

Por outro lado, quando não dizemos às pessoas o que pensamos, elas são livres de imaginar o que quiserem de nós. E pior, podem julgar que nós pensamos delas o que elas acham de pior em si.

Está decidido! Vou escrever!


Será que ainda há tempo? Gosto de pensar que, ainda que pouco, o tempo é sempre infinito.

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