domingo, 15 de fevereiro de 2015

A viagem


Acordávamos antes do sol, com uma festa ternurenta na cabeça, acompanhada de um beijo e um 'Bom dia.' cantado baixinho, pela mãe, aos nossos ouvidos.

Os três pulávamos da cama desviando o sono com ânimos que nos sobravam.

O pai num festim de malas e sacos, sentenciava
'Aviem-se! Aviem-se, senão apanhamos muito trânsito.'

Na garagem dormia o automóvel que nos levaria ao nosso destino. Um Saab 96, branco, ainda com motor a dois tempos e acompanhado duma curiosa carripana de marca Goggomobil com a cor da moda de então. Um azul de roupa interior, que harmonizava quase no perfeito com os armários da cozinha. O pai usava-o em dias de trabalho para se deslocar até à estação do Metro mais próxima de casa.

O carro era empurrado para fora da garagem, com manobras de volante, feitas através da janela do lado do condutor, previamente aberta. O motor desligado, evitava a concentração de gases do escape no interior do seu abrigo.

A partida era um momento solene como se da descolagem dum avião se tratasse.
'Fheee, fheee.', fazia o pai num assobio chocho de apenas ar, assinalando manobras complicadas que careciam de precisões milimétricas.

Eram perto de duzentos e sessenta e oito quilómetros de viagem suados, para quem tinha que conduzir por aquelas estradas nacionais da altura, marcadas por algumas práticas bem dignas de filmes do Far West.

De início, cerca de trinta quilómetros de progresso levavam-nos de Lisboa a Vila Franca. Nesta autoestrada, passávamos por baixo duma pequena ponte que prevenia quedas de sacos, transportados através dum sistema de roldanas, entre duas unidades duma fábrica. Esta era para nós uma marca inequívoca (quase) de que nos dirigíamos à Beira Alta.

De uma forma simples, o itinerário resumia-se a: Lisboa, Leiria, Coimbra e, por fim, Santa Comba Dão. O pai fazia contudo e, quase sempre, variações que eu imaginava servirem para despistar perigosos agentes secretos nossos inimigos.

Ao fim de sensivelmente uma hora, passávamos pela Batalha cujo mosteiro nos alertava pouco faltar para a nossa primeira paragem. Aproveitávamos Leiria para atestar a viatura duma mistura de gasolina e óleo e também as sentinas do café central no cumprimento das nossas fisiológicas carências. No café, os pais compravam Brisas do Lis para oferecemos aos avós. As Brisas eram doces regionais em caixas de dúzia, brancas e com uma fotografia do castelo da cidade à noite.

A seguir a Coimbra havia dois caminhos possíveis: ou atravessando a verdejante serra do Buçaco carregada de frondosas árvores ou fazendo gingar o carro pelas estreitas estradas que passavam na Foz do Dão e serpenteavam pelos montes como víboras. Por aqui, o veneno escolhia sempre a mana (coitada) e obrigava a paragens para práticas regurgitantes.

A chegada começava a ser anunciada com algum tempo de antecedência, recuperando assim em nós a esperança daquela viagem, afinal, poder vir a chegar ao fim. Primeiro quando passávamos a Mealhada, depois o Luso, Mortágua e,...

Finalmente! Santa Comba!

Deixando o cemitério do nosso lado esquerdo, víamos, ao fundo da descida, a igreja matriz, depois o tribunal e o entroncamento mais central da vila a que todos chamavam balcão

(Balcão? Agora, a esta distância afigura-se-me um termo curioso. Só se pela proximidade da Caixa Geral!).

O balcão ramificava-se em cinco artérias e era o sítio mais movimentado do lugar onde se concentravam vários habitantes, em conversas sem urgências e acompanhadas por cigarros fumados pelos homens. Poucas eram as mulheres que se arriscavam a imitá-los, não fosse a vila falar.
À nossa passagem, saudações eram trocadas e, que a nossa chegada iria de imediato ser anunciada, não tínhamos a menor dúvida.

Por fim, a seguir à Casa do Povo, avistávamos a Peneirada, a casa dos avós, na qual viria a viver, ao longo de anos, experiências impossíveis de esquecer.

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