sábado, 7 de fevereiro de 2015

Da memória que ainda me resta


Não sei se já nasceu comigo ou foi depois crescendo em mim, o prazer de fazer felizes aqueles de quem gosto.
Sempre tive preocupações para que nada (ao meu alcance) lhes faltasse e que tudo corresse bem. Com certeza por resultados da formação transmitida em exemplos de inquietações, medos e dúvidas.
Contudo, só consigo conceber gostar das pessoas quando as respeito e admiro. E calculo que o mesmo aconteça quando me dizem gostar de mim. Caso contrário, será com certeza mais um daqueles casos em que me vão tratar bem só até que consigam o que querem de mim.

Desde sempre quis ter uma família grande e poder contribuir para a alegria de todos. De organizar jantares animados, Natais com magia e receber os amigos lá em casa, sempre que, por qualquer razão, lhes apetecesse aparecer. Cheguei mesmo a dizer a todos que, lá em casa, recebíamos às terças e sábados, como que num romance de Tolstoi.

Quando entrava numa prova de corrida, procurava sempre ajudar aqueles que me acompanhavam, puxando por eles, motivando-os para que conseguissem terminar a corrida. Alguns diriam que não sou competitivo, embora eu sinta que a vida se ganha duma outra maneira.

E desta forma vivi alegre, só por ver os outros ficarem felizes. Muitas vezes até comovido, por gostar mais das pessoas pelo bem que lhes faço do que pelo bem que elas me fazem a mim.

Vi os meus filhos crescer e senti as contrariedades que surgem e são naturais nos adolescentes.
Achava que tudo o que fazia era feito em prol do seu bem-estar (todos nós o achamos) e, consequente, da minha felicidade. Entendia porém (nem todos o entendem) que podia errar e que devia por isso por em causa as minhas convicções como forma de validar estarem estas corretas ou não.
Comecei a sentir que cada vez mais não ligavam ao que dizia. Ouviam-me sem me escutar. Diziam-me que me tinha esquecido, fazendo-me acreditar que a minha memória fugia de mim.    
A dada altura comecei a experimentar um certo mau estar quando frequentava espaços com muita gente. Desejos de fins-de semana sozinho. Necessidades de descansar.

Mas fui teimando e lutando pela vida. E lá reencontrei o meu equilíbrio.

Um dia, mais tarde, em conversa com a minha filha mais nova e tentando passar-lhe aqueles princípios em que acreditava (não me ensinaram outros), senti que o som se dissipava e a visão turvava. E pareceu-me ver os seus olhos húmidos numa expressão de quem tem pena, mas não consegue fazer nada. De quem se sente de mãos atadas.

E só então julguei perceber.

Estou deste lado. Não sei se hoje se há anos. Julgo que estou a falar mas não, apenas recordo conversas longínquas. Por isso só preocupo os que me rodeiam. Tenho que me ver ao espelho. Não me lembro de me ter vestido hoje. Parece não haver comunicação. O meu prato? Não sei se comi ou se me deram de comer. Ela tem ar de quem olha para alguém que não se lembra dela. Mas eu lembro-me. Eu lembro-me de ti filha. Só não consigo falar. Pelo menos na mesma língua. Deves-me achar doente, demente. Se calhar estou. Que raio! Isto de estar para aqui fechado, preso, continuando a adorar a minha filha, mas sem lhe conseguir dizer o que queria dizer. Inútil no amor que sempre lhe quis transmitir.

Não sei se ainda cá estou. Se ainda aí estou. Ou se já morri e só te vejo, ao longe, da memória do que ainda me resta. 

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