quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A razão dos netos


Foi num domingo de dezembro. Tínhamos um almoço combinado. Entre filhos de sempre e já dois novos (genro e nora), lá foram chegando enquanto o assado perfumava a casa com aromas de inverno em família. Alguns petiscos para entrada iam aparecendo em cima da mesa da cozinha. É engraçado reparar na crescente importância que esta divisão da casa tem como espaço de concentração e convívio.

Sem pressas, como convém a estes nossos dias de descanso, a filha mais velha saiu acompanhando a cunhada por aparentes urgências de compras de última hora no supermercado do bairro. Enquanto o segundo filho me pedia ajuda lá fora para trocar a escova limpa vidros do seu carro. Por azar o modelo que tinha comprado não se ajustava, o que, curiosamente, não pareceu ser assunto de transtorno.

Entrementes, reparo que procurava a minha atenção 

     'Pai!...'

Olhei para ele e reparei num olhar especial que dificilmente alguma vez esquecerei.

     'Pai, a minha mulher está grávida'

De imediato senti um estremeção e obriguei o termóstato das minhas emoções a baixar ao mínimo que me foi possível e perguntei-lhe, 'Sabes que será uma enorme mudança na vossa vida. Que, por sinal, não anda fácil para ninguém. É mesmo isso que vocês querem?'
Aquele filial olhar dizia, sem quaisquer equívocos, tudo. Mas ainda assim respondeu 'Sim pai. Já pensamos e falamos os dois. Sabemos que a mudança é colossal, mas gostamos muito um do outro e é tudo o que mais queremos.'

Posto tal, dei como que um biqueiro no regulador interno dos meus sentimentos e apertámos as nossas felicidades num amplexo de pai e filho.
Entrámos em casa e seguiram-se olhares de soslaio, parabéns e abraços discretos, pois a novidade, aos mais novos, seria dada com outra preparação e em altura solene, de maiores certezas clínicas.

Nos dias e meses que se seguiram, a baba abundava em mim. Uma certa tendência para achar que compreendia tudo o que iria acontecer. Afinal já tinha sido pai umas quantas vezes e tratava-se de experiência que não me era rara. Acho que deve ser a reação de qualquer um que sabe vir a ser avô. 

Mas não, havia qualquer coisa que sentia ter que ser diferente. Não devia tentar intrometer-me e substituir o papel dos futuros pais, muito embora devesse estar atento a necessidades de ajuda e pedidos de conselhos.

Acompanhei sessões de ecografias e relatos de tudo estar a correr bem, até que o dia da espera, na sala do hospital, chegou.
Ao fim de horas de conversa, lanches improvisados e cafés, entrecortados por notícias trazidas pelo futuro pai que acompanhava lá dentro todos os acontecimentos, chegou a novidade. Nos primeiros minutos já dum novo dia, a notícia foi transmitida pelas enfermeiras que vieram fumar o cigarro da vitória do nascimento da minha neta.

Vi-a pela primeira vez passadas algumas horas, já na tarde daquele domingo em que nasceu. Era linda e queria pegar-lhe ao colo, mas consegui lembrar-me de respeitar a mãe. Para meu espanto e mais uma dose de felicidade aquela minha nova filha disse-me para pegar naquela bebé linda. E assim o fiz com todas as cautelas para impedir danos por babas que me sobravam.

Seguiram-se tempos de biberons, mudanças de fraldas, banhos, papas, os primeiros dentes. A primeira noite passada casa dos avós. Um fim de semana inteiro.

Mas ser avô não é como ser pai. Nem sequer pai duas vezes, como há quem afirme. Só talvez a ténue semelhança de não se saber o que vai acontecer. Mas ainda assim achar que se sabe.

Os netos não existem para recordarmos tempos de filhos. Para lhes fazermos o que esquecemos ou não conseguimos quando foi a nossa vez.
São sim uma continuação dos nossos e consequentemente de nós. Fazem-nos sentir a alegria, mas também as dores dos nossos filhos.
Acompanhei a experiência de uma avó que viu o seu neto, com alguns dias apenas, a ter de ser submetido a uma intervenção cirúrgica e percebi a seu desespero. Se alguma coisa corresse mal como é que iria ficar o seu filho. Quase como se preferisse substitui-lo. Que fosse antes com um seu filho e não com um neto.

Os netos fazem acontecer coisas maravilhosas. Fazem pais querer construir lares onde possam fazer crescer alegrias. Fazem pais ficar emocionados ao receberem um telefonema do irmão por saudades de dois anos de viagens. Fazem pais convidar irmãos para padrinhos.

Fazem-nos ver crescer ramos e folhas duma mesma árvore e testemunhar o quanto vale a pena lutar por ter uma família.

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