Foi
num domingo de dezembro. Tínhamos um almoço combinado. Entre filhos de sempre e
já dois novos (genro e nora), lá foram chegando enquanto o assado perfumava a
casa com aromas de inverno em família. Alguns petiscos para entrada iam
aparecendo em cima da mesa da cozinha. É engraçado reparar na crescente
importância que esta divisão da casa tem como espaço de concentração e
convívio.
Sem
pressas, como convém a estes nossos dias de descanso, a filha mais velha saiu
acompanhando a cunhada por aparentes urgências de compras de última hora no
supermercado do bairro. Enquanto o segundo filho me pedia ajuda lá fora para
trocar a escova limpa vidros do seu carro. Por azar o modelo que tinha comprado
não se ajustava, o que, curiosamente, não pareceu ser assunto de transtorno.
Entrementes, reparo que procurava a minha atenção
'Pai!...'
Olhei
para ele e reparei num olhar especial que dificilmente alguma vez esquecerei.
'Pai,
a minha mulher está grávida'
De
imediato senti um estremeção e obriguei o termóstato das minhas emoções a
baixar ao mínimo que me foi possível e perguntei-lhe, 'Sabes que será uma
enorme mudança na vossa vida. Que, por sinal, não anda fácil para ninguém. É
mesmo isso que vocês querem?'
Aquele
filial olhar dizia, sem quaisquer equívocos, tudo. Mas ainda assim respondeu
'Sim pai. Já pensamos e falamos os dois. Sabemos que a mudança é colossal, mas
gostamos muito um do outro e é tudo o que mais queremos.'
Posto
tal, dei como que um biqueiro no regulador interno dos meus sentimentos e
apertámos as nossas felicidades num amplexo de pai e filho.
Entrámos
em casa e seguiram-se olhares de soslaio, parabéns e abraços discretos, pois a
novidade, aos mais novos, seria dada com outra preparação e em altura solene, de
maiores certezas clínicas.
Nos
dias e meses que se seguiram, a baba abundava em mim. Uma certa tendência para
achar que compreendia tudo o que iria acontecer. Afinal já tinha sido pai umas
quantas vezes e tratava-se de experiência que não me era rara. Acho que deve ser a reação
de qualquer um que sabe vir a ser avô.
Mas não, havia qualquer coisa que sentia
ter que ser diferente. Não
devia tentar intrometer-me e substituir o papel dos futuros pais, muito embora
devesse estar atento a necessidades de ajuda e pedidos de conselhos.
Acompanhei
sessões de ecografias e relatos de tudo estar a correr bem, até que o dia da
espera, na sala do hospital, chegou.
Ao
fim de horas de conversa, lanches improvisados e cafés, entrecortados por
notícias trazidas pelo futuro pai que acompanhava lá dentro todos os
acontecimentos, chegou a novidade. Nos primeiros minutos já dum novo dia, a
notícia foi transmitida pelas enfermeiras que vieram fumar o cigarro da vitória
do nascimento da minha neta.
Vi-a
pela primeira vez passadas algumas horas, já na tarde daquele domingo em que
nasceu. Era linda e queria pegar-lhe ao colo, mas consegui lembrar-me de
respeitar a mãe. Para meu espanto e mais uma dose de felicidade aquela minha
nova filha disse-me para pegar naquela bebé linda. E assim o fiz com todas as
cautelas para impedir danos por babas que me sobravam.
Seguiram-se
tempos de biberons, mudanças de fraldas, banhos, papas, os primeiros dentes. A
primeira noite passada casa dos avós. Um fim de semana inteiro.
Mas
ser avô não é como ser pai. Nem sequer pai duas vezes, como há quem afirme. Só
talvez a ténue semelhança de não se saber o que vai acontecer. Mas ainda assim
achar que se sabe.
Os
netos não existem para recordarmos tempos de filhos. Para lhes fazermos o que esquecemos
ou não conseguimos quando foi a nossa vez.
São
sim uma continuação dos nossos e consequentemente de nós. Fazem-nos sentir a
alegria, mas também as dores dos nossos filhos.
Acompanhei
a experiência de uma avó que viu o seu neto, com alguns dias apenas, a ter de
ser submetido a uma intervenção cirúrgica e percebi a seu desespero. Se alguma
coisa corresse mal como é que iria ficar o seu filho. Quase como se preferisse
substitui-lo. Que fosse antes com um seu filho e não com um neto.
Os
netos fazem acontecer coisas maravilhosas. Fazem pais querer construir lares
onde possam fazer crescer alegrias. Fazem pais ficar emocionados ao receberem
um telefonema do irmão por saudades de dois anos de viagens. Fazem pais
convidar irmãos para padrinhos.
Fazem-nos ver crescer ramos e folhas duma mesma
árvore e testemunhar o quanto vale a pena lutar por ter uma família.
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